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26 de agosto de 2016
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10:30

Comunhão

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Sul 21
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Mendigo CarrinhoPor Lélia Almeida

Quando meu filho nasceu eu estava no meio de um Mestrado de Literatura Brasileira. Minha vida era assistir três tardes de aulas no campus da universidade, estudar e cuidar de um bebê pequeno. Sabia que era um tempo de grandes adaptações a uma vida nova: aprender a ser mãe, escrever uma tese e terminar o curso. Dei conta desta enorme tarefa com alegria, adorava as aulas e também o tema que tinha escolhido para trabalhar. E gostava da minha nova condição no mundo, a de ser a mãe do menino. Mas tive os meus momentos de insegurança e cansaço, embora tudo pulsasse brilhante e novo ao meu redor.

Todas as manhãs depois de fazer o menino mamar eu ia pra janela do quarto pra fazê-lo arrotar. Naquela hora do dia passava pela rua um rapaz todo vestido de branco, muito moreno, o corpo belamente definido, professor de capoeira, tocando um berimbau. Durante meses o vi passar na rua enquanto eu embalava meu filho. O som do berimbau e aquele belo homem atravessando a calçada me lembravam que o mundo era um lugar exuberante onde podia-se dançar com alegria. De certa maneira, penso hoje, ele me ajudou a transpor aquele período de solidão em que me dividia entre os livros e meu filho.

Moro no bairro Bom Fim em Porto Alegre, meu filho agora tem 26 anos, continuei estudando ainda por muito tempo e a vida andou. Todas as noites antes de dormir, lá pelas 23h30, um homem jovem atravessa a minha rua carregando um carrinho de supermercado, anda rápido e barulhento pela rua vazia e fria. Quase sempre já estou na cama esperando o sono chegar, neste momento em que nos lembramos das coisas banais do dia que passou misturadas com as coisas que temos de fazer no dia seguinte e mais, muito mais. É quando a noite desce sobre nós, imensa e escura, lembrando do nosso desamparo, das nossas saudades, dos sonhos perdidos, dos desejos inconfessáveis. Sempre penso que estamos todos adormecidos numa grande planície, aterrorizados com o poder da escuridão que ilumina tudo o que mais tememos e assim adormecemos, medicados e seguros, para esquecer que somos seres de tristezas, faltas e pavores.

Ele dá muitas voltas na quadra antes de ir embora. Aliás, não sei se ele dorme ou continua caminhando por outras ruas, e o som do carrinho é um som que deve um incomodar muita gente. Mas quando ele aparece – e ele sempre aparece – agradeço a Deus pela sua presença. Porque me sinto provida com a presença dele, um louco que vara a noite carregando os nossos medos e os nossos pavores, sinto que não estou só no mundo, que ele vai comigo, rua afora, noite adentro e que essa presença errática é como uma bênção que me faz adormecer quase serena. Um louco e um carrinho, e dentro dele os nossos fantasmas e pavores noturnos. Vou com ele para onde ele for, que deve ser onde estão os outros loucos que sabem que a substância da vida é feita disso também, escuridão, abandono, medos, frustrações, e tristezas, as mais amenas. Vou quase feliz porque andar pelo escuro acompanhada é muito melhor do que ir só.

Boa-noite, meu amigo.

.oOo.

Lélia Almeida é escritora.


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