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26 de abril de 2016
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10:05

Carta aberta para a minha mãe

Por
Sul 21
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Carta aberta para a minha mãe
Carta aberta para a minha mãe

letter-bw2Por Lélia Almeida

Ontem postei uma carta para o Pedro Domingues, meu filho – que não está no Face – e recebi 226 curtidas, 73 compartilhamentos, 59 comentários e 48 emails. Acho que é como muito bem nos explica a Marcita Marcia Tiburi, que os fascistas não dialogam, que não falam com ninguém e não ouvem ninguém… Do retorno da minha publicação, muitas mães dedicaram a carta aos seus filhos, e muitos filhos responderam, num diálogo emocionante nestes tempos tão obscuros. Meu filho, que me chama de Mader desde pequeno, respondeu a minha carta e compartilho com vocês, celebrando esta conversa coletiva, um alento possível para este momento de tantas incertezas e angústias.

Porto Alegre, 22 de abril de 2016.

Carta aberta para a minha mãe.

Mader:

Não existe, provavelmente, ninguém neste mundo que eu ame mais do que a minha mãe e o meu pai. A água e a terra, porque foi nesta ordem que os percebi na minha vida, e foi nesta ordem que as coisas aconteceram.

Soubemos morrer e renascer os três juntos, em diversas situações, e hoje sei que quem abandona os privilégios que já existiam ao sair do útero – dados – pode cometer um erro fatal que leva para extremos impensáveis. Amo minha mãe por ter me ensinado a fantasia e a palavra, o cinema (minha profissão) e a compaixão. E amo meu pai por ter me ensinado com quem devemos dialogar em um mundo que pertence a quem o tem nas mãos, e principalmente os donos da grana. Os dois me ensinaram tipos diferentes de uma mesma força, da qual não me esqueço e que já me salvou da morte e da loucura. 

Não sou marxista, nem hippie, nem feminista, nem paraquedista, nem músico, nem porra nenhuma. Não quero dogma nenhum, quero uma caneta e uma câmera e MUITOS livros. Sou os meus amigos, os que respiram comigo este ar novo e perigoso. 

Como foi dito no texto de minha mãe, me acredito um observador voraz do que me cerca e me elege para lutar pelo que acredito. Mas não acredito no bem, nem na paz, nem tampouco em um futuro ou em algum lugar onde a vida seja cheia de tudo. Assim como muitos dos meus amigos e irmãos e irmãs de geração, enfiados em noites profundas e em becos sem ecos. Estamos sozinhos, mas NUNCA duvidem que não estamos prontos para lutar. Esta inércia que muitos dos pais veem na nossa geração e que é aparente, não existe, é o tempo de um longo preparo, como o de uma gestação dentro de um útero de plástico, de onde sempre soubemos ver, enxergar.

Sabemos atirar, sabemos brigar, sabemos gritar quando queima e sabemos escolher nossas batalhas.

Só NÓS sabemos verdadeiramente o que rolou em 2013. E que volta a rolar, nas manifestações espontâneas nas ruas. As gerações anteriores não precisam de culpa nem de saudosismos, vocês geraram um poder siderante que já não lhes cabe mais classificar nem entender. Agora é a nossa vez. O palco é nosso agora, sem culpa e sem medo. E, provavelmente, com morcegos ao invés de borboletas na barriga. E se queremos viver, vamos viver nele e – com todo respeito – temos a obrigação de fazê-lo melhor do que vocês, para criar o nosso. 

Não nos cobrem as facilidades que VOCÊS nos proporcionaram, vocês não criaram idiotas. Talvez sim, em alguns casos, mas como esta carta da minha Mader nasceu de diálogos nossos, posso argumentar que os imbecis sempre geraram imbecis, e minha mãe não é uma imbecil, modéstia a parte. Apesar dela se engasgar enquanto escova os dentes e fazer um som que sempre me faz rir, assim como o espirro do meu pai. Nem criaram seres ineptos e hedonistas. Já nascemos sabendo que a bolha nunca existiu e que apenas nos esquivamos o quanto podemos do impacto com o fogo das coisas, da pura vida como diria Werner Herzog, de tudo o que nos vem fora dos espaços ortodoxos e esta é a nossa academia. 

Meu pai, que me ensinou a fazer a barba, a andar direito, olhar as gurias nos olhos e deixar de ser sério e tímido, a ensinar apenas o que um homem pode ensinar a outro: que tudo dói, e é melhor estar forte pra quando esta dor vier, ele que sonhou comigo e me forçou a sair dos meus labirintos de autodestruição e viver o que eu consigo viver. Por que senão podiam existir coisas piores que a morte no aguardo. Muito piores.

E a minha mãe, que me ensinou a transformar esta dor em fiel aliada, no dizer, no tocar, no querer. No criar. Os dois me ensinaram isto: criar é matar a morte enquanto se vive.

Nem sei mais onde um começa e onde o outro termina, deve ser coisa de que não tem mais uma visão binária das coisas, que enxerga a realidade desnaturalizada, recontextualizada, transformando a vida em momentos de majestade, estranheza, angústia, uma busca fractal sobre a realidade proposta, enfrentando diariamente o grande mistério das coisas, tentando através de nossas artes levantar e destilar perfeitamente, para longe de contextos pré supostos (jornalismo contemporâneo, filosofia pós moderna etc..), para longe do que nos foi DADO, para habitar a NOSSA marcha faminta, agressiva e totalmente purificadora. Não nos apegando a prosaicas explicações sobre o que se ergue em nossa frente. 

Vamos todos juntos, mães e filhos, pais, irmãos, de sangue, de trago, de risos e choros, por onde a vida fizer unir pontos, afundar perspectivas, mas sempre nos olhando uns nos olhos dos outros. Em suma: não precisamos de suas culpas em nossos ombros, temos muita merda pra fazer, mas não cabe aqui expor estratégias, apenas amar minha mãe e meu pai. 

Como quis o Lorca: “De mão dada, em mão dada, lutando, e não interessa se sejamos derrotados”.

Por que lá vem o rodo.

.oOo.

Lélia Almeida é escritora.

 


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