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10 de maio de 2017
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10:00

Algumas mães da literatura

Por
Sul 21
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Gabriela Silva

Maio é o mês das mães. Já faz parte do nosso calendário tal comemoração. Atemo-nos no segundo domingo de maio como se fosse a data do Apocalipse. Primeiro pela lógica do pensamento comercial: a busca pelo presente, a demanda de enfrentar um shopping para encontrar um regalo que alegre e contribua para a felicidade materna. Segundo pela ideia do dia das mães – há quem diga, mas são todos os dias, pois mães, mesmo de filhos crescidos, são sempre mães. Não descansam nunca. Mãe é, dentro do que conhecemos desde sempre, “padecer no paraíso”. E mãe é única, mesmo que disponhamos de muitas mães (tias, vós, irmãs, madrinhas e amigas), dela herdamos nossas peculiaridades mais excêntricas e muitas coisas mais. Vale mencionar também que nada cura mais uma doença do que a sopa que a mãe de cada um de nós faz, rezando ou clamando por deuses de cada crença para que sejamos curados enquanto tomamos o que ela nos fez “com todo amor e carinho.”

Existem mães sensacionais mesmo, conheço várias. Mas sobretudo, há mães excepcionais na literatura. Lembro-me de algumas. A primeira que sempre me vem à mente é a mãe dos monstros. Uma personagem criada por Guy de Maupassant. “A mãe dos monstros” é também o nome do conto, que faz parte de uma série de histórias escritas pelo autor num efervescente época de publicações, mesmo período em que se encontrava perturbado por amores problemáticos e pela sífilis. A narrativa é sobre um homem que é levado a uma cidade do interior por um amigo. Ele conhece a tal mãe dos monstros, uma mulher que com um tipo de espartilho que havia criado, deformava seus filhos ainda no ventre, através das diferentes maneiras de amarrar tal peça. Os bebês nasciam completamente deformados e eram vendidos ou explorados como aberrações pela mãe. Ela sobrevivia dessa maneira. O conto se desenvolve a partir da lembrança do homem ao passar um por uma bela jovem na praia e que depois ele saberia, fazia exatamente a mesma coisa que a tal mãe.

A outra mãe um tanto curiosa é a mãe de Bento Santiago – o Dom Casmurro de Machado de Assis. Na verdade ela me incomoda muito. Faz promessas com a vida do filho (o primeiro nascera morto e se o segundo vingasse seria padre) e contribui significativamente para que ele se torne, o que conhecemos desde que começamos, lá ainda na infância a ler Machado de Assis. Dona Glória desejava um filho padre, já que o menino tinha lá seus problemas de saúde, juntou-se o útil ao agradável e fez a promessa de que se ficasse restabelecido entraria para o seminário. Porém, ela também queria o filho junto a si. Então estudar direito e casar-se com Capitu era uma boa saída. Viúva ainda cedo, aos trinta e dois anos, decidira ficar na cidade para que pudesse permanecer perto da igreja onde o marido estava sepultado.

Julie Christie no papel de Gertrudes, mãe de Hamlet

Ainda lembro Gertrudes, a mãe de Hamlet, personagens de William Shakespeare. Gertrudes que adora o filho, mas casa-se com o irmão do marido, não percebe os ardis em que está metida até os ossos. E quer que o filho deixe de lado o luto, que aceite o tio, que ame Ofélia, que seja normal. Hamlet por sua vez, sofre com a cegueira da mãe quanto ao marido e o desamor que ele atribui ao pai falecido. Gertrudes nunca entende nada, apenas sorri e lamenta a loucura do filho. Morre por beber o veneno para ele preparado, salva-lhe a vida num instante, mas não adianta nada, ele morre do mesmo jeito. E é nesse último momento, enquanto o veneno lhe envolve as entranhas que ela percebe que Cláudio era o que Hamlet dizia ser.

E há a mais terrível das mães. Aquela que nos tira o sono, nos perturba o coração e coloca-nos de sobreaviso a respeito da humanidade: Medeia, de Eurípedes. A princesa da Cólquida, enamorada de Jasão, primeiro esquarteja o irmão, Apsirto, para facilitar a fuga do amado. Já em Corinto, depois de alguns anos de casado, ele bem mais jovem que ela, se apaixona por outra, ou melhor é convencido por Creonte, o rei, a deixar Medeia e casar-se com Glauce, sua filha. Não suportando o abandono, se sentindo expurgada como uma doença, num ímpeto de ódio, rancor e porque não – auto -preservação (os filhos do seu ventre não seriam adoradores de outra mulher) – Medeia mata os filhos. Eles são a materialização do amor por Jasão e encerrado o amor, o pai não ficaria com os filhos que ela havia gerado.

Há tantas outras mães que eu poderia elencar na literatura ocidental. Lembrar de mães que sofrem com seus filhos, das que abandonam a própria vida para que eles sejam felizes e mães que representam o puro amor. Escolhi essas para mostrar sobretudo a humanidade das mães. Do mesmo modo que os seus filhos e todos os outros humanos, elas tem o direito aos defeitos, aos medos e aos rancores. Uma mãe é apenas uma mulher. O estatuto de mãe é para nós, filhos. Elas continuam amando, odiando, metendo-se em encrencas ou livrando-se de outras. O que amamos em nossas mães é para mim, o tudo que podemos aprender. E eu lembrei de todas essas para que entendêssemos de que matéria somos feitos: a mais suculentas das carnes coordenada pelo mais estranho sistema – a mente.

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003), Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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