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29 de março de 2017
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10:00

Vinte anos para sempre

Por
Sul 21
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Gabriela Silva

Há determinadas memórias que nunca conseguimos abandonar. E vai além das paredes do nosso próprio corpo, além das paredes do nosso apartamento, além das estantes de livros que nos protegem do mundo. Somos feitos de memórias, sempre tenras mesmo que velhas. Eu ainda tenho vinte anos, eu parei nos vinte anos. Sinto no rosto todos os dias a brisa dos dias novos e de uma vida toda pela frente. Nunca consegui ter a idade que tenho. Não sei ao certo o motivo.

Talvez seja meu complexo de Dorian Gray, apesar da minha total semelhança com Lord Henry. Não há nenhum retrato meu guardado num quarto secreto. O máximo que consigo esconder são chocolates em algumas gavetas. Duram pouco, logo eu mesma descubro o esconderijo.

Há uma fala em Dorian Gray, romance de Oscar Wilde, um tremendo escândalo para o século XIX e seu puritanismo sempre tão à flor da pele. Espetacular em seus aspectos constitutivos, obra teve partes censuradas e sua leitura considerada perniciosa. Dorian, além de um hedonista óbvio, seria considerado também um homossexual e as relações entre ele, Basil e Lord Henry, promoviam tal efeito de sentido no leitor. Também Dorian seria um misógino, bon vivant, um dandy para usarmos a boa palavra que definia tão bem o seu autor. O certo que o livro todo é um conjunto de belas imagens e trechos mesmo sensacionais. Lembro de um em específico, Lord Henry e Dorian conversam e o primeiro diz ao jovem interlocutor que se costuma cultivar mais o intelecto do que a beleza, pois a beleza se vai com o tempo, mas a inteligência permanece.

Uma premissa verdadeira, a matéria de que somos feitos, tem por sua natureza um prazo de validade. Já a nossa mente, ou a ideia que temos de mente, se mantém, cultivamos isso. Através da arte, da literatura, da música, de uma ideia de beleza muito além do que entendemos por beleza. Um dos aspectos que mais gosto no estudo da arte é justamente o Belo. O que me faz lembrar do Sublime e do Grotesco de Victor Hugo em que os dois significados são explicados em diferentes aspectos, mas também mostra-se como são complementares.

Nos tornamos complementares, de nós mesmos, carregamos contrariedades necessárias. Pulsões de vida e morte, amor e ódio, tristezas e alegrias e assim por diante. Lembro-me sempre de Bernado Soares quando penso no desassossego que é controlar todas essas pulsões ao mesmo tempo e fazemos isso de modo automático. Se pararmos para pensar: pifamos a máquina.

Volto aos meus vinte anos. Foi um ano significativo, por muitos motivos. Um em especial: foi o ano que assisti Trainspotting, filme de Danny Boyle sobre o livro de Irvine Welsh, com o mesmo título. Meus vinte anos cravaram-se na minha carne nesse exato momento. Lembro de ter ficado em êxtase, tamborilando com os dedos uma das canções do filme. Era Lust for life do Iggy Pop. Aquilo mexia com os meus nervos, eu precisava do que havia naquele filme, como as próprias personagens precisavam da heroína em que era viciados. O filme é um ícone dos anos 90. Mudei minha vida. Assumi meus gostos, meu jeito de falar, meus gostos musicais, a literatura que eu gostava, tudo, Trainspotting foi o meu Lord Henry, Irvine Welsh me estendeu uma possibilidade que eu só entenderia muito tempo depois.

Era pegar e correr. Correr muito, tudo que eu podia, sem olhar para trás. E é isso que tenho feito esses anos todos, corro sempre em frente, atravesso pontes, cruzo estradas e continuo. Porque é preciso não se prender onde não há nada que nos faça feliz. A mobilidade é uma benção. E o que carregamos conosco é o que realmente importa. Essa ideia de que o mundo está a minha frente para eu desvendar é muito viva e já não sei não pensar assim.

Anos mais tarde li Trainspotting, li num dia, quando consegui o livro, quando o peguei nas mãos, meu coração parecia que ia explodir. Mark Renton, Sick Boy, Franco Begbie e Daniel Murphy corriam nas minhas veias. E é assim até hoje. Cada vez que releio, que revejo, o coração bate no ritmo da canção do filme. Depois li Pornô, a sequência da história e que reune as quatro personagens na mesma cidade de Edimburgo. E não contente eu li toda a obra de Irvine Welsh. E quando tudo fica fora da ordem, vou até a estante, pego o livro e releio. E eu não vou contar a história, não vou mesmo. Quero que todos leiam e vejam o filme. Quero todos tamborilando as canções ao meu redor.

Então, esse fim de semana eu assisti T2 Trainspotting, a continuação, também sob a direção de Danny Boyle e adaptado do segundo livro de Irvine Welsh. Éramos cinco ou seis no cinema. Havia um sorriso de ansiedade como o meu. Eu iria rever minhas personagens, principalmente Mark Renton. E o meu coração explodiu. Se espalhou pelo cinema, pelas poltronas todas e eu voltei aos vinte anos, porque eu quase tinha esquecido que sempre terei vinte anos.

E há em cada um de nós esse ponto de voragem, marcado por algo importante, ou como no meu caso, um filme, um simples filme que movimento meu instinto mais primitivo de sobrevivência. E todas as vezes que leio Drummond ele ressurge me mostrando que preciso vencer a máquina do mundo e não ser a poeta de mundo caduco.

Voltei para casa imensamente feliz, como quem encontra velhos amigos. E confirmei uma ideia que nunca eu deveria ter deixado de lado: que correr é uma escolha e que eu posso escolher ser o que eu quiser e correr para onde eu quiser. Não há uma razão, uma justificativa lógica para ser assim. Eu escolhi a literatura, a loucura do poema, a vibração de cada sonoridade de palavras que me seduzem. Eu escolhi o amor pelas personagens, sua companhia e vida. Escolhi noites e mais noite de leitura, livros pela casa toda e só saber literatura e mais literatura. É a minha heroína e a minha corrida, é o que há depois da ponte e ao redor de tudo. E é isso que eu escolho.

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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