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29 de novembro de 2016
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10:00

Novembro, mês do desassossego

Por
Sul 21
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saramagoPor Gabriela Silva

O que entendemos por desassossego? Incômodo? Um desajuste com tudo que nos cerca ou talvez desalinho da alma com seu tempo e espaço? Todas essas circunstâncias são válidas. Cabem entre as letras dessa palavras diversas possibilidades de significado. Para mim esse desassossego está ligado a tudo o tempo todo. É uma paz e ao mesmo tempo um desajuste quando observamos o mundo, como se tudo nos incomodasse e nos colocasse num transe de expectativa exatamente por que não conseguimos entender o que se passa e esperamos uma explicação, ou um “deus ex-machina” como os gregos usavam nas tragédias.

Sempre senti a literatura como desassossego, quem sabe porque eu considere o mundo um desassossego só. Viver é perigoso e exige coragem, está lá em Guimarães Rosa. Muitas vezes encontramos na literatura o caminho para essa coragem, para começar nossa viagem iniciática. Temos nossos dispositivos, elementos que num determinado episódio de nossa existência ativam-se, nos ativando junto. Daí é que não paramos mais, e nosso destino transborda, se expande nas linhas da vida que havíamos tracejado como certa.

O que me faz gostar de muitos livros é esse sentimento de que algo pode me acontecer a cada nova página. Comove-me o ato da escrita, o que faz com que um sujeito comprometa-se com uma ideia e a traga ao mundo com uma experiência além do misticismo. A literatura torna-se um grande espaço de sonho, onde esse sujeito deposita o que lhe é utopia, quimera, desejo ou “simples ânsia”.

Essas coisas todas encontrei muitas vezes, por isso me tornei professora de literatura. Cada encontro desses é como um encontro amoroso, meu estômago vibra, meu coração estala. Penso como vivi tanto tempo sem aquelas palavras, sem aquela história a me fazer companhia. E me apaixono de tal maneira que fico em desassossego pleno. Foi assim com Saramago e com Fernando Pessoa.

Saramago me tomou de assalto em “Ensaio sobre a cegueira”. Depois com as “Intermitências da morte”, “Caim”, e “História do cerco de Lisboa”. E o Ano da morte de Ricardo Reis, me tomou de uma maneira que chego a ruborizar quando falo. Gosto tanto deste livro que muitas vezes sonho com as caminhadas de Ricardo Reis por Lisboa. Confesso: há uns que não gosto mesmo. Li a custa de uma náusea e um desagrado constante. Nem sempre somos obrigados a gostar de tudo, não? Outros li e ainda leio sem cansaço e cheia de desejo. Saramago tem para mim uma predestinação ao desassossego. Sua escrita me diz isso, seus narradores conversam comigo em pleno movimento de busca pelo mundo e seus sentidos. Me pegam pela mão e dizem: vê, olha, sente, examina e entende. Do mesmo jeito que me tornei desconfiada lendo Hamlet, me tornei mais atenta ao mundo com minhas leituras de Saramago. Sua própria biografia torna-se parte do que gostamos em seus livros. Há de se ter ideia do que se quer da vida, ser contrário ao fluxo, sobrepor o fluxo ou segui-lo como os barcos de papel que largamos na água da chuva que escorre entre a calçada e a rua. Ser serralheiro que mexe com o metal e o recorta; ser jornalista que escreve sobre as coisas e suas condições no mundo e ser escritor que dá a todos (que se disporem a pactuar) as suas ideias.

Fernando Pessoa é uma história de um amor estranho. Sempre me rondou, conto isso há tempos. Apareceu-me num dia, em um poema, numa página qualquer, depois foi entranhando-se, revirando-me, dividindo meu cotidiano em poesias que eu mesma ia ajeitando de acordo os dias do meu calendário. Já não era só, havia muitos que me faziam companhia. Mas um em especial, despertou-me o amor de uma forma diferente. Foi meu encontro comigo mesma. E é tudo que eu procuro. Bernardo Soares, o guardador de livros. Quando li pela primeira vez o Livro do Desassossego, me senti um tanto acima do chão, chegara enfim ao meio do labirinto, podia escolher para onde ir. É minha leitura constante, minha edição está cheia de comentários, de ideias de outros textos, de frases ou versos de outros poetas e escritores. Eu lamento tê-lo conhecido apenas aos vinte e nove anos, queria ter tocado suas páginas antes, porque não fui mais a mesma. “Mover-se é viver. Dizer-se é sobreviver” é uma das passagens que mais gosto dessa obra. Digo, fazendo graça que quando vou a Lisboa, caminho com Bernardo. E é verdade. Embora eu saiba que ele não gostaria muito de companhia, ainda sim, eu adoraria dizer-lhe: estás certo, é preciso dizer-se e deixar o que somos ou o que fomos dito em algum lugar para que alguém nos leia.

Somos feitos de histórias, de narrativas pequenas, mas grandes em sentido. Certa vez, estava eu em Lisboa e perguntei a uma senhora que varria a frente da sua casa onde ficava um a Igreja de Santo Antônio. Respondeu-me ela, como se me conhecesse: “ó andorinha, que queres com o Santo? Vai voar que és desassossego.” Conversei um pouco com ela, contei que era professora de literatura. E ela me diz “tens o mar nos olhos e umas asas tão bonitas”. Tatuei uma andorinha nas costas, para não me esquecer desse dia. Ali, entendi que não podemos fugir do desassossego que trazemos no peito.

Novembro é o mês de aniversário de nascimento de José Saramago e da morte de Fernando Pessoa. Ainda é primavera, também é aniversário do amor e das flores em talos verdes e tenros. É tudo em novembro. Ou quem sabe somos nós a ser tudo o tempo todo e não percebemos que estamos em pleno desassossego.

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Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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