Colunas>Gabriela Silva
|
1 de novembro de 2016
|
09:30

Drummond e mais um outubro que termina…

Por
Sul 21
[email protected]

drummond-no-mar-estava-escrita-uma-cidade-4Por Gabriela Silva

Termina outubro. Terminam seus trinta e um dias, mas nós seguimos. Vamos adiante nessa vida um tanto estranha, muitas vezes assustadora, mas nunca indesejada. Talvez tenhamos esperado demais do outro, quem sabe tenhamos mesmo acreditado que o outro via tudo como nós víamos e vemos. E precisamos mesmo seguir, entender que o fundo do poço é apenas o fundo do poço e dele não passaremos. Reconstruir a escada quebrada, olhar para cima para saber que horas são e se não vai chover, com a iminência de um afogamento são as ações próximas para quem está no fundo do poço.

Outubro é um mês estranho (em 2016 todos os meses tem sido estranhos), mas outubro traz em si mesmo algumas datas que nos tomam de assalto o coração e nossa verve poética. Além de ser o segundo mês da primavera e estarmos esperançosos de que o inverno e o frio nos esqueça por algum tempo, é também tempo de aniversários significantes na literatura, principalmente na literatura brasileira. É o mês de aniversário de Vinicius de Moraes e de Carlos Drummond de Andrade. Como sempre falo incansavelmente e choro a morte de Vinicius, que me arrebatou de amores aos quinze anos, hoje, falo de Drummond, que tem sua cota significativa neste coração.

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), era mineiro de Itabira, alguns anos viveu por lá – isso sabemos desde a primeira vez que lemos o poeta, está em seus versos, a sempre memória da cidade natal, das coisas que compõem esse imaginário de infância, de família. Carlos casou, fez família, teve trabalho, foi funcionário público, perdeu gente que amava, amigo que amava, perdeu tempo pensando na vida, no corpo, no amor e na morte, penetrou surdamente no reino das palavras e fez poesia. E deixou-nos um universo todo a ler, entender e gostar ou não. A máquina do mundo que nos processa e molda todos os dias, o tempo todo, ensina que precisamos da poesia para sobreviver às suas engrenagens rangedoras e das quais não escapamos.

31 de outubro, último dia do mês e uma data tão mítica para leitores de poesia: aniversário de Drummond. E fala-se no Dia D, em que sua presença é evocada através de seus poemas, e não se chora a morte do poeta – que a eternidade às palavras pertence, mas não à matéria do que somos feitos. Nem ossos, nem carne duram para sempre, mas o que se deixa permanece, um tanto depois de já não se estar mais.

Drummond não era um modernista, mas traz do estilo e da escola literária, a liberdade formal, o verso livre, a linguagem inusitada e as temáticas cotidianas, livres de associações clássicas e presunçosas. Lança seu primeiro livro em 1930, “Alguma poesia” e tudo o que se segue é publicado em diversos países como Portugal, Estados Unidos, França, Espanha, Alemanha, Suécia, Argentina e muitos outros.

E o que ele escreveu tornou-se parte do nosso imaginário, associações que fazemos com sua poesia e nossa própria vida: não há quem não pense em Quadrilha para falar de amores e quiprocós mal sucedidos; “E agora José?” pergunta constante para qualquer brasileiro; “Que pode uma criatura senão entre criaturas amar?” quando queremos justificar a nossa falta mesma de amor ou a nossa sede tácita? E talvez até para pedir a Mariquita o pito, que o dela é mais bonito, lembramos de Drummond.

Também não cantaremos provisoriamente o amor, pensaremos por muito tempo que a ausência é falta e tantas pedras encontraremos no meio do caminho e toda a poesia de Drummond nos servirá de alento, de respiro para entendermos o que nos cerca e o que nos serve de chão para pisar.

Drummond escreveu sobre o isolamento do sujeito, a solidão, a reflexão existencial, desencantou-se com o mundo e com tudo que acontece ao redor do homem enquanto a vida segue. Não deixou passar em brancas folhas o que via na sociedade, com os problemas que não eram seus, mas comuns a todos ao mesmo tempo, Drummond era pessimista, seus poemas lembram que nada podemos frente a morte. A metafísica se espalha em seus versos. E essa mesma, a morte, esteve sempre ali a rondar sua poesia, a encher-se de palavras e metáforas para ficar bem perto de nós, espreitando nosso rosto quando nos aproximamos do livro para sorver os versos. E antes da morte, falou-nos da infância e da memória, para sabermos que somos feitos deste tecido urdido o tempo todo em nós mesmos. E mais, falou do corpo, do sexo, do desejo de estar na carne do outro e sentir-se no outro. Foi Antônio Crispim e Barba Azul nas suas crônicas.

Conheceu o modernismo por Mário de Andrade, foi amigo de Manuel Bandeira (que o achava mirrado pra burro), também de Pedro Nava, Cyro do Anjos e tantos outros. Leu, escreveu, teve amantes (como a bibliotecária Lygia Fernandes), mas foi casado sessenta e dois anos com Dolores, morreu-lhe a filha Maria Julieta e com ela segue, doze dias depois, de infarto.

Sempre estou em Drummond, acho que até mais que em Vinicius de Moraes. Vinicius tem sua aura de primeiro amor, deflorou-me o sentido poético ainda menina, quando eu apenas sonhava com o namorado como nos filmes antigos que via nas tardes modorrentas da minha não-fazenda. Foram dias de um inesgotável desejo, mesmo, a sério: escondia-me no quarto para ler, reler, procurar naqueles sonetos alguma coisa que eu ainda não tinha encontrado e como prova do meu mais sincero amor e também fiel, eu decorava os versos e recitava, como se olhasse para o próprio poeta, ali, sentado à beira da minha cama.

Drummond foi diferente, tão diferente, não sei ao certo se traio Vinicius, de repente, a ideia que se deve ter é que se complementam para mim, isso, se complementam. São os dois que me fazem desejar o amor. Há um poema de Drummond que foi o desencadeador de tudo que de fato ele hoje é para mim: Balada do amor através das idades. Nele, o poeta fala de um sentimento que não se prende ao tempo, que se transforma a cada novo século, a cada nova forma do mundo perceber homens e mulheres, até a época moderna. Eu carregava esse poema, numa fotocópia, toda já amarelada, com anotações nas margens e marcada pelas vezes que dobrei a folha para que ela coubesse no meio do caderno da faculdade, dentro do livro que ia comigo para a aula. Vivi Drummond assim, durante a faculdade, era minha companhia na biblioteca e eu levava para casa os livros com ares apaixonados e namorava-o por tardes de sábado a solto.

Depois a coisa ficou mais séria, acadêmica e aprendi a analisar fi-lo-so-fi-ca-men-te Drummond, e a máquina do mundo se abriu para mim, o amor pulou o muro e passou pelo vestido pendurado no prego. Já não era mais a menina encantada com um verso sem rima e sem pudor, era agora uma mulher pensante, dona de seus livros todos na estante e que podia pegar Drummond a qualquer hora e ler, matar vontades, puxar a cadeira, sentar-se e dizer: pois vamos às pedras no meio do caminho, que eu quero é ser gauche na vida.

E há de ser sempre essa toda, a gente lê, não lê Drummond, mas agora José que a festa acabou, que tudo está sem graça e o medo invadiu nossas vidas, eu se fosse você leria o poeta, não porque se deva achar um explicação para tudo, mas talvez porque se deva acreditar na vida. E também nosso motivo maior é que não queremos cantar um mundo caduco, onde o abismo está no passo seguinte.

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora