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11 de outubro de 2016
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11:00

A paciência

Por
Sul 21
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machado-de-assisPor Gabriela Silva

A paciência não é senão uma energia.
George Sand

Li Machado de Assis, quase tudo dele que publicado foi. Há alguns atrás participei de uma pesquisa que resultou numa publicação. Era um dicionário Machado de Assis, formado de diferentes verbetes retirados de romances, contos, crônicas, ensaios e críticas literárias. Nessas leituras que fiz (eu, leitora circular de Dom Casmurro), encontrei tantas coisas que me fizeram pensar sobre outras muitas coisas. Uma das mais interessantes foi no livro Balas de estalo, uma reunião de textos publicados no jornal Gazeta de Notícias entre os anos de 1883 e 1886. Num desses textos encontrei a seguinte frase: “A paciência é um presente dado ao homem pelos deuses.” Lembrei disso por esses dias, porque definitivamente precisamos da paciência. Ela nos molda, de certa maneira para que todos os dias consigamos sobreviver as peripécias e travadas que o cotidiano tem.

Essa frase tornou-se uma epígrafe em minha vida. Explico: sou de uma paciência bíblica, sim a moda de Jó, tenho quase sempre boa vontade com o mundo que me cerca e procuro esperar que a vida me ajude a compreender o que se passa nela. A ansiedade, perspectiva contrária à paciência, costumo resolvê-la com chocolates e digo para mim mesma “come chocolates, pequena, come” como uma vibrante justificativa para a predileção pelo doce.

A palavra paciência vem do latim “patientĭa, ae” com o significado de “capacidade de suportar, constância; submissão, servilismo; faculdade de resistir, derivado do verbo patĭor, ĕris, passus sum, pati “sofrer” – informações essas retiradas do Houaiss. E muitas vezes associamos paciência à capacidade de ser também resiliente.

A verdade é que eu considero a paciência algo cultivável. Ela é muitas vezes, a única solução para difíceis demandas. Em determinadas situações não há nada a se fazer além de esperar e isso exige de forma indissociável que tenhamos paciência.

No próprio Dom Casmurro de Machado de Assis, Bento Santiago é de uma paciência que nem os chocolates, nem a metafísica me fazem entender. Ele nos conta sua história calmamente, com detalhes (eu sei que é em primeira pessoa e ele não é nem um pouco confiável), para que também nós leitores – que somos demasiado importantes para Machado – possamos entender o que se passa com ele. Saber ler e contar-se ao outro faz parte dos requisitos de ter paciência.

Bento Santiago não é o único paciente da literatura, há muitos outros. Alguns identificamos logo de primeira, outros, depois de algum tempo, nos damos conta de sua natureza de espera, de calmaria quase lunar.

Edmond Dantès, personagem principal de O conde de Monte Cristo, romance de Alexandre Dumas é um dos melhores exemplos de paciência que conheço. Depois de toda a sujeira que lhe é imputada garganta abaixo e a liberdade usurpada pelos seus detratores, ele passa anos numa prisão terrível, o Castelo de If, que só sai morto. Nesse tempo na prisão, ele, analfabeto, totalmente ignorante em qualquer aspecto de cultura ou conhecimento, se torna um homem que lê, educa-se e planeja sua vingança. Abade Faria, seu companheiro de encarceramento lhe ensina esgrima, literatura, filosofia e política, além de torna-lo um homem rico. O amigo em sua morte, concede-lhe a liberdade. Edmond torna-se então Conde de Monte Cristo e executa sua vingança contra Mondego e outras personagens que lhe causaram tremendo mal.

A personagem de Alexandre Dumas, para mim, é um dos grandes exemplos de paciência e de resiliência que conheço. Nesse tempo em que ele poderia viver em desespero total, debatendo-se contra as paredes da cela, ele na verdade, aproveita para que da couraça de ignorância surja um homem diferente, agora culto, conhecedor do pensamento e da natureza humana. Essa paciência adquirida o ajuda a planejar e cumprir o que precisa.

É também a paciência de Jane Eyre, a personagem de Charlotte Bronte, tem em sua natureza constantes brotos de paciência a nascer-lhe na alma. Desde a infância suportara o desprezo, o ódio da tia e dos primos; na escola era alvo das mais improváveis implicâncias e dos mais severos castigos. Na vida adulta apaixona-se por um homem totalmente desconhecido e com usa cota de loucura e segredos. Mas ela resiste, tem a paciência de viver cada dia de uma forma única, faz do seu cotidiano, não uma espera pela solução do amor ou da vida, mas um tanto de tempo para o aprendizado, para que novamente aprenda a caminhar com as próprias pernas e resiliente (a palavra companheira de paciência) sobrevive a tudo e encontra o amor nos braços de Rochester depois dele mesmo ter sobrevivido a sua desgraça matrimonial e financeira. Ah Jane Eyre nesse tempo de espera, também se descobre uma herdeira de uns bons trocados.

Se ambas as personagens tivessem, a seu modo, se desesperado e aniquilado a própria vida, como saída para a falta de perspectiva, a solidão, a miséria, a ausência de amor ou de compreensão, não teríamos essas grandes histórias que temos. Não é algo de dormir e acordar-se paciente, é gerar-se em paciência, em modos de entender-se como terra própria para o cultivo.

E mesmo nas fábulas de Esopo, nos mitos gregos, nas histórias que toda a humanidade conta e reconta, lá está a paciência como uma virtude necessária. Sem ela não nos é possível seguir, ou entender o caminho a seguir.

Então Machado de Assis escreve a frase com que comecei o texto “A paciência é um biscoito dado aos homens pelos deuses”, talvez seja verdadeiramente o biscoito da sorte, aquele dos orientais que numa imitação de oráculo nos oferece uma leitura de futuro. Ela é de fato uma virtude, um presente dos deuses, em tempos de modificações cotidianas, de uma necessária resiliência, a paciência tornou-se algo sem o qual a vida é difícil, porque é preciso esperar que a casa caia, que os tijolos quebrem-se todos e nada sobre, para que tudo possa ser reconstruído. E daí virá a nossa paciência de perceber cada tijolo da nova construção, e entender que sem observar, nada teremos de material para trabalhar.

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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