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27 de setembro de 2016
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10:00

A primavera que me chega em palavras

Por
Sul 21
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raskolnikovPor Gabriela Silva

Estamos tão próximos da primavera que quase podemos tocá-la com as pontas dos dedos. São ventos que se multiplicam, são os pássaros que num esforço poético povoam de sonoridades nossas madrugadas e tudo o mais que se torna colorido, expectante.

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, ligado ao sensacionismo (devemos sentir e não pensar), num poema sobre a primavera, fala dessa nossa espera pela estação, numa possibilidade de renovação,: “Quando vier a Primavera,/Se eu já estiver morto,/As flores florirão da mesma maneira/E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada./A realidade não precisa de mim.”

Lembro-me da infância, em que minha mãe abria os armários, trocava as roupas de lugar, era preciso deslocar as roupas de inverno e trazer as de primavera e verão. Eu adorava essa mudança, era certo que com isso, eu poderia brincar no jardim, tomar sol na grama verde, muito verde, que cercaria a casa nos próximos meses.

A primavera é uma grande alegoria, talvez a mais utilizada pelo homem. Orhan Pamuk em O romancista ingênuo e o sentimental escreve sobre dois tipos de ficcionistas (mas que também se pode pensar nos poetas). O sentimental que percebe o texto como uma construção, e que seus elementos são precisamente elaborados. São escolhas feitas de maneira prévia para surtir determinados efeitos e o romancista ingênuo que pensa o texto como um local onde ele deposita suas experiências, escrever uma ficção é como escrever sobre sua própria vida, tornando o texto uma extensão de si mesmo.

Então eu penso sobre isso e me lembro de alguns textos ficcionais e poéticos que li e onde eu encontrei essa forma de perceber as estações do ano. E que eu considero intencionais mesmo, pela possibilidade da sensação de sentir no corpo o que a literatura traz sob cada palavra. A começar por Shakespeare em Sonho de uma noite de verão. A história dos encontros e desencontros amorosos de dois casais e o sonho, o encantamento que uma noite de verão, repleta de desejo, de ânsia amorosa (parafraseando Drummond) pode causar nos humanos corações. Sobre o corpo o calor age de uma maneira singular, faz dele uma esponja a absorver o calor externo, integra-nos ao sonho. Fadas, duendes, homens, mulheres, todos numa constante voragem de tudo na estação do estio. É também de Shakespeare o soneto em que ele compara quem ama a um dia de verão, luminoso que não se deixa fenecer no inverno, é eterno em quem se deseja.

O outono, lembra-me sempre o começo da tristeza de Werther, o amor por Carlota que o enlouquece, vai aos poucos tomando uma proporção maior, culminando no congelante inverno. Desse outono de Goethe, me sopram sempre ventos de melancolia. Também é no outono que inicia a história de Os Maias de Eça de Queiroz, é justamente nessa estação que Afonso da Maia e Carlos Eduardo se instalam no Ramalhete reabrindo suas janelas. O outono traz em si, certos ares de tristeza, talvez por que abra o caminho para o inverno e o recolhimento.

O inverno rigoroso sempre me faz lembrar de Dostoiéviski, de Raskolnikov e seu quarto gélido, das ruas de São Petersburgo, aliás, o inverno me lembra os russos. Também me lembro de Guerra e paz, da neve e do frio de algumas cenas que Tolstói cria em que Pierre me faz sentir junto com ele o frio que entranha na pele. E é o inverno de Vinícius de Moraes, doce que modifica as frutas, e enlouquece as rosas temporãs.

E a primavera comove-me, talvez por que eu esteja à espera do verão, com excessos de luminosidade. A primavera das poesias de Pessoa, a primavera de Seda de Alessandro Baricco, quando Hervé Joncour chega ao oriente para comprar ovos de bicho da seda. É também primavera quando Jane Eyre ouve o chamado de Rochester e quando Stella aparece pela primeira vez na peça Um bonde chamado desejo de Tennessee Williams.

Os gregos associavam as estações ao amor de Hades por Perséfone. O rapto e a negociação da liberdade de Perséfone por sua mãe Deméter, levaram a divisão do tempo da moça entre o mundo dos mortos e dos vivos. Assim, outono e inverno ela passava ao lado de Hades, no submundo, enquanto primavera e verão eram passados com sua mãe. Nessa temporada terrena, as flores desabrochavam, pomares se enchiam de frutos e a felicidade materna se espalhava na fartura da natureza. O inverno, por sua vez, que era a distância entre mãe e filha, tirava da terra as cores alegres e as brisas amorosas.

Lembrei de tudo isso, para justificar minha alegria com a primavera, com tudo que ela traz em si como metáfora e natureza. Direi que essas primaveras dos livros caminham junto conosco pelas ruas da cidade, numa espera constante de amor, de companhia, de que o sonho possa ser materializado e que dias melhores podem estar a caminho. De tanta esperança que é, a primavera toma ares de realidade além dos livros e das canções. Ela é, agora, o que sentimos quando abrirmos a janela além da mesa de leitura.


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