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1 de agosto de 2016
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10:11

O ódio que precedeu o amor – Clarice Lispector

Por
Sul 21
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O ódio que precedeu o amor – Clarice Lispector
O ódio que precedeu o amor – Clarice Lispector

Clarice LispectorPor Gabriela Silva

Eu odiava Clarice Lispector. Verdade, juro. Para mim suas obras eram chatas, enfadonhas, cheias de clichês e personagens bobos. Durante a graduação, li como se fosse o Atlas carregando o mundo nas costas. Li de má vontade, torcendo o nariz como criança fazendo manha. Depois no mestrado e no doutorado agradeci aos deuses por que ela não apareceu em nenhuma disciplina. E quando havia uma sombra dela, a mínima possibilidade de encontra-la, eu saia de fininho, corria para outro escritor procurando abrigo.

Quando comecei a dar aulas de literatura brasileira tive – com o coração apavorado – de falar sobre Clarice, reler Clarice, pensar Clarice. Era muita Clarice para pouca Gabriela. Aguentei, nunca nenhum aluno notou as reviradas de olhos, a cara de dor ou o sofrimento que assolava minha pobre alma. Começou com A paixão segundo GH . Aquela chata daquela barata, aquela mulher mais chata ainda e seus pensamentos que não me interessavam.

Assim levei Clarice por muito tempo. E pior: meus amigos, meus alunos e todo o resto da humanidade achavam que eu adorava Clarice. Me pediam para falar sobre ela, me mandavam seus trabalhos sobre a autora e pediam opinião. Afinal, Clarice e eu (segundo eles) tínhamos muito em comum.

Em agosto de 2010, meu orientador de doutorado, Assis Brasil, me presenteou com um livro. O pacote fechado não me permitia saber o nome do autor, o título, nada. Era o presente, incógnito. Aliás a frase que acompanhou a entrega do presente foi: “Guria, acho que vais gostar muito, eu achei sensacional.” Abri o pacote, agradeci contendo a braveza, era um presente e de um amigo. Sou sentimental ao extremo. O livro? Clarice, de Benjamin Moser, aquela biografia publicada pela CosacNaify.

Nem a edição belíssima, nem o biógrafo, nem a Clarice conseguiam me convencer a tirar o plástico que protegia o livro. Ficou assim por um ano. Até que, o destino que nos coloca sobre cordas que apenas alinham um lado ao outro do abismo, me pôs de frente com Clarice, de novo. E eu não podia dizer não.

Tinha que falar sobre a autora. Ia pesquisar na biblioteca da Universidade, ia procurar quem soubesse dela mais que eu. Procurando na estante os livros de literatura brasileira me dei conta que tinha a tal biografia, rompi o plástico que embalava a obra. Sentei-me comodamente, peguei minha caderneta de anotações. Nenhuma linha foi escrita. Eu não podia. Não tinha como escrever.

Ali, naquele momento em que eu e Clarice ficamos a sós, me foi dito tudo. A garota ucraniana, que nascera pouco tempo antes da família embarcar para o Brasil, suas escolhas, seu destino, tudo me fascinava. A língua presa, os olhos lindos de quem observa o mundo com certa tristeza, a humildade de achar-se sempre amadora, sempre com um caminho a aprender, os filhos, os amigos, as paixões que Clarice despertava. A paixão que era Clarice. Tudo nela que era encantador e único.

Foi como se dessem um medicamento que acaba com um incomodo, uma dor, um mal-estar. Reli A paixão segundo GH, me dei conta da humanidade daquela personagem, de toda a densidade dela que a torna quase material. A hora da estrela, aquela invenção de narrador, que cria e narra ao mesmo tempo, aquela Macabéa, Ma-ca-béa, não era mais uma retirante infeliz que morria de uma maneira idiota. Era agora, Macabéa, a última criação de Clarice, para mim, agora motivo de tristeza.

Não me separei mais de Clarice, não relutei mais. Suas narrativas passaram a me compor, suas personagens, repletas de uma vida incontestável agora eram minhas companheiras na aventura da vida.

Clarice me absorveu toda. Hoje, para falar dela, preciso conter as lágrimas, escolher o que falar, pois quero falar tudo. A entrevista que a autora deu em 1977, pouco antes de morrer, abriu um buraco no meu coração. Como é bom ouvi-la, entender seu modo de ver o mundo, sua timidez para falar, o modo de acender e segurar aquele cigarro, a humildade, a certeza da morte, fragmentada em cada livro. Dizia ela que morria quando acabava um livro, iria renascer, para escrever outro. Acidentes, percursos difíceis, tristezas, a doença, tudo em Clarice nos mata e nos impede de morrer como seus leitores.

Entendi Joana, Macabéa, Rodrigo, a menina que sonega o livro, a galinha, o mistério de cada personagem, a consciência da humanidade, a potência de cada sujeito criado por Clarice e o animal que abrigam dentro de si. Li seus contos, romances, novela, procurei ver tudo que podia, tentei me desculpar com ela e comigo mesma.

Gosto tanto de Clarice que releio Perto do coração selvagem às vezes, por esses dias revisitei A hora da estrela e os contos do novo trabalho de Moser, a antologia completa pela Rocco. Aqueles olhos convidativos da Clarice nunca mais ficarão escondidos na minha estante.

Nunca agradeci ao Assis Brasil, sempre há tempo, ele também me amenizou o coração para Frida Kahlo que eu odiava, mas odiava de um modo sobrenatural. A ferocidade daqueles olhos me incomodava. Hoje me acompanham. O presente que ele me deu abriu um caminho muito feliz de leitura, de conhecimento. Um pouco Virgílio, Assis me conduziu para um pequeno paraíso literário.

Em julho, no dia 25 se comemora o Dia do Escritor, escolhi para falar sobre escrita, falar de Clarice. Por que é preciso entender a humanidade da literatura, a generosidade de uma mente que cria coisas absurdamente fascinantes. A partir de si mesmo, do mundo e de tudo que está no seu imaginário, sujeitos como Clarice nos oferecem possibilidades infinitas de felicidade, nada clandestinas.

Nessa mesma entrevista para o programa Panorama, duas coisas me chamaram a atenção, a origem do nome Lispector, do latim “flor no peito”, a flor de lis significa, entre tantas coisas, pureza, quase santidade, Clarice tinha no seu nome, muito do que era: sua sinceridade, característica peculiar e indissociável de sua natureza. Sua sinceridade era de uma pureza única, no meio do peito, do seu, das suas personagens, no dos seus leitores. A outra foi saber que Vinícius de Moraes tinha uma queda por Clarice. Vinícius é meu primeiro amor literário, apaixonei-me por ele aos quinze anos com o Livro de Sonetos. Se ele amava Clarice, por que eu não amaria?

A verdade é que amei, desde o primeiro momento, por que encontrei nela eu mesma. Clarice me permitiu ver que o humano, o demasiado humano assusta e faz com que recuemos. Fechamos um livro, muitas vezes por medo do que vamos encontrar, ou pela certeza de que vamos encontrar algo que nos responderá sobre o mundo, a dor, a vida.

Sou sentimental, já contei, quando comecei a escrever esse texto. Literatura para mim é visceral, mesmo que eu estude Teoria da Literatura há muito tempo. Se um livro não me tomar de assalto, não me incomodar, eu me afasto, procuro outro, tento encontrar algo que nele não encontrei. Escolhi falar de Clarice para começar minhas colaborações com o Sul21, para que vocês saibam que para escrever tudo isso meu coração estava aos pulos, ansioso.

Invejo quem ainda não leu Clarice Lispector, ou quem a odeia, como eu já odiei. Por que descobrir alguém assim, é espetacular. Permitam que a Literatura não fique nas estantes, que ela tome um espaço significativo na vida. Morram e renasçam em cada livro. Há muitos encontros nessas mortes, há muita vida nessas histórias.

Boa leitura, sempre.

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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