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30 de agosto de 2016
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10:30

O leitor, esse sujeito ai, atrás do livro…

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Sul 21
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srta4Por Gabriela Silva

Penso sempre na questão do leitor. Sou uma leitora, tornei-me uma estudiosa por causa dos momentos de leitura que me sempre me foram possíveis. Desde a infância até hoje, a leitura tem sido minha fiel companheira, articuladora incansável entre o mundo imaginado e o mundo real.

O papel do leitor é de uma terrível importância, por mais que se diga por aí que o leitor não significa nada, ele, ao contrário significa e muito. É para ele que o autor escreve, e nisso não precisa residir nenhuma especificidade. O leitor faz parte de um sistema (autor-obra-leitor), ele concretiza a obra, concede a obra de arte literária um sentido, uma razão como objeto estético.

Então quando um autor dedica seu tempo a escrita de um texto, seja ele uma narrativa ou poema, é para esse sujeito – em espera constante por mais coisas para ler – que ele pensa o que vai escrever.

Por que é o seguinte, o que é um autor? Dentro da minha cabeça (e pode ser que seja só aqui, mas sei que muitos leitores e escritores concordam comigo), o autor é em primeiro lugar um leitor, e de algum modo ele decidiu ser autor a partir da experiência da leitura. Por isso percebemos determinadas influências, características e modos de pensar de um autor em outro.

Gosto de imaginar que o autor conversa silenciosamente com o seu provável leitor, sonda-lhe os gostos, aspira satisfazê-lo como quem oferece um doce inevitável. Agrada-me a ideia de que cada palavra escrita é pensada para esse alguém desconhecido que vai ler o futuro texto.

Há quem escreva mesmo de maneira direcionada, pensando num interlocutor específico. É o caso das cartas de amor (que já sabemos são ridículas). É um dos melhores exemplos de direcionamento e de sustentação de propósitos literários que conheço. A carta de amor é pensada para um determinado leitor e todas as coisas contadas, esclarecidas, mostradas são assim feitas para que esse leitor consiga sentir-se envolvido pela leitura.

Dai eu gosto de ser romântica (no sentido daquele viajante sobre a montanha do Caspar Friedrich, que observa o mundo e o deseja para si) e pensar que um escritor deseja minha atenção e minha vontade de ler.

Quando penso sobre isso, lembro de Flaubert e a demora em escrever Madame Bovary, ele procurava a palavra certa, levou alguns anos escrevendo o romance, por que era necessário que cada vocábulo expressasse o que deveria com exatidão. Para mim, isso é pensar no leitor, pensar no resultado da escrita sobre o leitor e para o leitor.

Esse leitor ideal que irá compreender a narrativa, pactuar com a ficção estabelecendo vínculos que durarão muito tempo e que podem se modificar a cada leitura nova que ele fizer do mesmo livro é o leitor que falo. Esse leitor pensado por Flaubert.

Alberto Manguel fala do leitor ideal num texto chamado “Notas para a definição de um leitor ideal” que está no livro À mesa com o Chapeleiro Maluco – ensaios sobre corvos e escrivaninhas. Neste ensaio, Manguel comenta sobre as possíveis ações deste leitor ideal, e tem algumas que eu gosto muito: “O leitor ideal é o escritor no exato momento que antecede a reunião das palavras na página” e outra, “O leitor ideal é o personagem principal de um romance.” Manguel ainda comenta mais uma das formas de se ver o leitor: “Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.” E não é mesmo, o próprio escritor conhece seus esquemas, suas alegorias, seus paradigmas e paradoxos. O leitor tem que descobrir, precisa ler, participar desse jogo de charadas e encaixes que é a leitura.

E os leitores ideais se renovam a cada leitura, se modificam, atravessam o tempo e as formas de leitura. A Idade Média com suas leituras sussurradas, escondidas, privadas era a época dos leitores mais desejosos das obras, por que tudo era mais difícil, sonegado, obscuro. A literatura era uma possibilidade de liberdade, ainda que ali, no silêncio e no pó de uma biblioteca monástica.

A leitura é também corpo e o leitor pode sentir o que a literatura se propõe a dizer, a leitura em voz alta, aquela que fazemos quando queremos mostrar a alguém nosso trecho predileto, esta leitura foi um dos primeiros modos de se ler. Os saraus, as leituras em grupo são formas antigas e carregadas de significados para os leitores que estão ali para ouvir e o leitor que deseja compartilhar o que mais lhe comove, aquele trecho de uma narrativa em que algo lhe causa alguma emoção ou que lhe provoca as mais diferentes sensações. A leitura da poesia, essa transforma o poema em corpo, em sangue, em nervos e cada momento do poema é uma epifania, um movimento em direção ao eu lírico que no poema toma a voz e fala com o leitor.

Este leitor, cheio de desejo, de vontades é o leitor que se perde no labirinto de Borges, que quer subir escadas com Cortázar, ou que responde as provocações de Machado de Assis. Esse leitor é o sujeito que espera em cada virada de página dos contos de Alice Munro ou se intriga com os pensamentos das personagens de Clarice Lispector. Ainda há o leitor que vai viver as aventuras de Dom Quixote, o que vai resmungar quando Lizzie disser não ao Mr. Darcy, o outro que vai gritar com Raskolnikov quando ele começar a ver as manchas de sangue nas calças e sapatos. Há o leitor que contará cada ruga de Dorian Gray, o que cairá junto com Alice na toca do coelho e o que acompanhará o silêncio que restou depois da morte de Hamlet. Mas existe ainda, o leitor que vai embora para Pasárgada, o que vive o amor enquanto este durar, há aquele que vive muitos anos em Itabira e muitos que fingem a dor que não sentem, mas que a sentem quando leem os poemas de seu poeta mais querido.

É tanto leitor diferente e todos são um mesmo leitor, aquele imaginado pelo escritor. E ainda há mais: o leitor imaginado por nós mesmos, leitores. Quando esperamos um livro, com ansiedade de que a história seja aquela que mexa com o nosso imaginário, que nos conte um segredo sobre a humanidade ou sobre nós mesmos que procuramos saber a vida toda.

Lembro de Dorian Gray, na sua porção leitor, quando ele lê o Livro Amarelo, ali ele começa a pensar sobre muitas coisas, avança sobre o mundo com uma demasiada sede de conhecimento e contato com culturas diversas. A verdade é que todos nós temos um livro amarelo, um livro que ultrapassou nossas expectativas e nos invade de desejo e vontade de ventura, de modificação, de mutação.

A verdade é que a jornada do herói, aquela que a gente aprende e que justifica a estrutura de muitos textos é também a jornada do leitor, por que ele está ali, junto com o herói e tantas coisas que acontecem com o protagonista vão responder no coração do leitor.

Ricardo Piglia no livro “O último leitor” fala da questão do mundo real e do imaginário, lembra que “a leitura constrói um espaço entre o imaginário e o real, desmonta a clássica oposição binária entre ilusão e realidade.” E é por ai mesmo, não é fronteira, tudo faz parte de um mesmo lugar e se complementa de forma única: a mente do leitor. Por que só nós, leitores sabemos o tamanho e as distâncias percorridas em nossas viagens, a altura da montanha, o esconderijo do anel, as toneladas e a boca enorme da baleia que perseguimos, as cicatrizes dos nossos monstros. Somos o que o autor deseja: a outra parte da sua obra. Então, cada livro lido é nosso também.

Eu mesma, imaginei você leitor, dizendo: “nunca li Moby Dick” ou “acho Hamlet um bobalhão”. Por que a leitura é escolha, é prazer e podemos não ter lido tudo que existe no mundo, mas devemos pelo menos ler o que nos causa aquele frio na barriga, como quando estamos apaixonados. Eu poderia falar sobre tudo o que gosto, o que não gosto e mais, sobre aquilo que ainda está por vir, mas é uma longa história. Agora, exatamente agora a minha pergunta é: que leitor você é?

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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