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16 de agosto de 2016
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10:00

Borges e o espelho

Por
Sul 21
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jorge_luis_borgesPor Gabriela Silva

“Além disso, estou destinado a perder-me, definitivamente, e só um ou outro instante de mim, poderá sobreviver no outro”.
O fazedor, Jorge Luís Borges.

Hoje é meu aniversário. Para comemorar escolhi falar de Jorge Luís Borges (1899-1986). Preciso de um interlocutor, então, me pergunte por quê. Explico: Borges me ensinou a gostar de mim mesma, do som da minha voz, das coisas ao meu redor e da minha mente.

Li Borges pela primeira vez há muitos anos atrás, O informe de Brodie, lembro que gostei muito das narrativas e me achei tremendamente esperta ao conseguir entender personagens, tramas, clímax e desfecho de cada conto. Dai para a frente foi outra história – a minha com Borges.

Apaixonei-me por sua figura, simpatizava com seu rosto, com as expressões de quem procura na memória a imagem que os olhos não mais contemplavam. Era ali, naquela cabeça de alvos cabelos que a matéria imagética se manipulava, se alternava com o mundo que Borges contemplava com o sentido estéril da visão. A cegueira lhe havia tirado a percepção das cores e das formas, mas de modo algum tomara dele o mundo. Este, vasto, imenso, cabia em todas as suas narrativas, poemas e memória.

Muitas vezes ao falar de Borges, me confundo com Dante, chamo-o assim. E entendi por que: Borges assim como Dante criou um universo particular, feito de suas metáforas, analogias, alegorias e símbolos que preenchem cada espaço de suas histórias.

Suas personagens manifestam singularmente os tipos humanos, o sonho, o medo, a dúvida, a memória, a imaginação. Em sua prodigiosa capacidade de criar, Borges imaginou seres fantásticos, histórias que nos colocam mesmo do avesso como leitores e observadores do mundo. Em suas obras ele cria um Inferno, Purgatório e Paraíso, vale-se de muitos artifícios narrativos e fabulosos para nos contar o que engendrava em sua mente.

Segundo biografias de Borges, já criança ele havia dito ao pai que queria ser escritor. Ávido leitor, na biblioteca do pai, encontrara os grandes clássicos, leituras envolventes e repletas de ideias para uma criança que desejava a escrita para si, que dispunha de um gênio imaginativo e criador.

Seus contos estão repletos de personagens intrigantes que reúnem em si aspectos míticos, metafísicos, filosóficos e históricos. Seres híbridos do mundo ficcional e real: Pierre Menard, Funes – O memorioso, Tadeo Isidoro Cruz, Aureliano e João de Panonia; lugares, animais, sonhos, jardins, caminhos, labirintos e tigres. Tudo está ali, na ficção de Borges.

E se expandia em seus ensaios, seus poemas, suas críticas literárias. Borges vivia a literatura como algo essencial para entender o mundo que não mais lhe pertencia como visão, mas como imersão, como matéria para criar.

E sua capacidade criadora aliava-se a outras: Adolfo Bioy Casares cria com Borges Bustos Domeq, um heterônimo escrito a quatro mãos, que perambula por Buenos Aires, trazendo consigo, em si mesmo, características de ambos os escritores.

Tudo em Borges era genial, seus poemas, repletos de símbolos e alegorias nos permitem epifanias únicas a cada leitura, a cada nova leitura como se todas as vezes que relemos seus versos uma nova ideia nos apanhasse de assalto, nos promovesse um novo convite ao fantástico, ao lúdico, ao outro lado da página que desemboca num universo particular e ao mesmo tempo compartilhado com o leitor.

Borges foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, professor de literatura, editor, crítico, ensaísta, poeta e ficcionista. Trouxe aos leitores a possibilidade de mundos fantásticos, de histórias incríveis e de sonoridades e poemas únicos.

A cegueira, agressiva, que começa na infância, uma deficiência genética, cumpre seu papel na década de 50, tomando-lhe a visão das coisas. Borges então dita suas obras para amigos e parentes que as colocam no papel.

Sua existência repleta de peripécias, de fantásticas criaturas, de viagens como a de Ulisses, de personalidades como Maria Kodama, Adolfo Bioy Casares, Genebra, Buenos Aires e o outro lado de um espelho sem reflexo aparecem em suas obras, libertam-se em suas criações.

Há pouco tempo li No meu peito já não cabem pássaros de Nuno Camarneiro, autor português. No romance há três histórias diferentes: Karl, personagem de Franz Kafka; Jorge Luís Borges e Fernando Pessoa. Todos construídos com lirismo ímpar e envolvente. Mas Borges, em especial, Nuno conseguiu dar-lhe uma infância cheia de fantasia, um garoto que não conseguia mais abrigar nos limites do seu corpo as histórias que sua mente criava. Sei que é ficção, mas Nuno completou meu imaginário borgiano com uma infância para o autor argentino. E assim como no romance português, também tenho um Borges só meu, que ouço a voz quando leio seus textos, que consigo perceber no canto da sala a espreitar as diferentes formas que respiro quando declamo seus poemas ou me apaixono por um ensaio (todas as vezes me apaixono de novo).

Borges me foi espelho, em O livro dos seres imaginários, ele fala sobre os “animais dos espelhos” e foi assim que sempre senti, como se ao me olhar no espelho não fosse eu mesma, mas algum animal mais antigo que tudo, que tenha precedido a humanidade e a civilização. Nunca consegui estabelecer um diálogo ou contato com esse animal, nunca tive coragem de lhe perguntar o nome ou lhe oferecer um sacrifício para contemplá-lo mais de perto. Eu apenas fico em frente ao espelho, me virando devagar, muito devagar para ver se ele me imita os gestos ou difere em seus movimentos.

A literatura tem isso não? Explica muito de nós, através de palavras que não nossas, mas que compartilhamos de outras vidas, de outras imaginações. Às vezes me sinto rondar pelos tigres de Borges, ou sonho com seus labirintos e quando convergem nossas leituras me aconselho em suas leituras, suas percecções da literatura e dos homens.

Comemorar um aniversário, implica comemorar tudo que nos compõe, não só anatomicamente, contemplando com felicidade nossa sobrevivência física. Também é festejar nosso imaginário, todos esses que estão na nossa memória, que formam o que somos. Borges está aqui, nessa festa de comemoração de vida e de possibilidades que ele mesmo me fez entender que é estar vivo e procurar ser exatamente o que se quer ser.

.oOo.

Gabriela Silva é formada em Letras, especialista em Literatura Brasileira (2003),Formação de Leitores (2005), mestre (2009) e doutora (2013) em Teoria da Literatura pela PUCRS, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil. É professora de literatura e escrita criativa nos gêneros poético e narrativo. Atualmente realiza pesquisa de pós-doutorado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no Centro de Estudos Comparatistas.


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