Gabriel Galli (*)
O plenário da Câmara dos Deputados estava em sessão desde o começo da tarde. Um dia antes, os presidentes dos três poderes se reuniram e combinaram de agilizar ao máximo a votação de medidas provisórias pendentes. Assim, seria possível votar mais rápido a Reforma da Previdência, o pacote anticrime e outras medidas que são prioritárias para Bolsonaro – e péssimas para o povo. Tudo parou por que a palavra “gênero” constava no meio de uma lei que tratava sobre quais dados deveriam estar em um formulário do INSS de registro de nascimento de bebês e nascituros.
Um dos mais aguerridos reclamantes foi o deputado Pastor Sargento Isidório, parlamentar mais votado da Bahia que acumula também, orgulhosamente, o título de ex-gay. Segurando uma Bíblia na mão, como faz, aliás, todos os dias em todos os momentos na Câmara, gritava que só existia sexo masculino e feminino, que gênero era qualquer coisa: mesa, cadeira etc.
Poderíamos dizer “bem, que bom que parou, quanto mais demorar para aprovar essas coisas, melhor”. É verdade. Mas não deixa de ser revoltante o nível de delírio com qualquer questão que envolva gênero. É o momento de manifestação em rede nacional da raiva em ver pessoas decidindo suas vidas das formas que as deixam mais felizes, do ódio à contestação das regras e do medo em presenciar que algumas pessoas não aceitam mais serem tolhidas por ideias antiquadas pregadas por falsos messias.
O deputado Glauber Braga, do PSOL, chegou a afirmar que falta pouco para que proíbam escrever “gênero” alimentício nas embalagens de comidas. Não duvido. E também falta pouco para que controlem de forma ainda mais severa nossas escolas, as universidades, a mídia e a Justiça. Eles têm um – bizarro – projeto de poder que vemos se impor de forma inacreditável. Só não é mais rápido pela incompetência de núcleos folclóricos de um governo delirante.
Às 23h38, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, se irritou e disse que se não houvesse acordo, derrubaria a sessão e as MPs pendentes cairiam. Ou seja, o futuro da estratégia de governo estava pendente por uma pauta de costumes.
– Eu não acredito que estamos discutindo isso – alguém disse no plenário.
Eu acredito. Acredito por que é óbvio que eles entendem que gênero e sexo são diferentes. Que gênero é uma construção social e que a LGBTfobia é um instrumento importante para a manutenção do discurso de conservadores com a suas bases. O preconceito pode ser muito lucrativo.
Major Vitor Hugo, líder do governo, disse que não se importava que a palavra passasse e que mandariam outro projeto de lei. Uma horda de malucos gritões o cercou entre berros. Não deixariam passar. Que caísse tudo, então.
Finalmente, alguém orientou os deputados a abrirem mão da polêmica e um acordo prevendo passar uma nova lei que os atendesse posteriormente foi prometido. Um deputado do PSC foi ao microfone:
– Abrimos mão pelo Brasil! Que não digam amanhã na imprensa que nós perdemos!
Não, deputado. Vocês não perderam. Quem está perdendo, faz tempo, é o país inteiro.
(*) Gabriel Galli é jornalista, mestre em Comunicação e ativista por direitos humanos . É fundador do grupo Freeda – Espaços de Diversidade, foi diretor do grupo SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade e trabalha como assessor na Câmara dos Deputados.
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