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14 de fevereiro de 2019
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11:50

Não rifem nossas vidas por hipóteses longínquas

Por
Sul 21
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Não rifem nossas vidas por hipóteses longínquas
Não rifem nossas vidas por hipóteses longínquas
Ato pela criminalização da LGBTfobia em Porto Alegre. (Foto: Joana Berwanger/Sul21)

Gabriel Galli

A esquerda precisa colocar os pés no chão. Já é difícil, como ativista dos direitos humanos da causa LGBTI lidar com a força e dominação dos grupos de fundamentalistas religiosos que querem tomar o Brasil na unha. É ainda pior ter que lidar com a falta de sensibilidade de parte da esquerda intelectualizada que dedicou a terça-feira à criticar o julgamento da ADO nº 26, que pode criminalizar a LGBTfobia, uma demanda histórica do movimento.

Por um lado, abolicionistas penais entendem que não se deve gerar mais leis criando novos crimes, que poderiam colocar ainda mais pessoas em um sistema penal adoecido, inchado e que mais prejudica a segurança pública do que ressocializa. Concordo com a ideia geral. Precisamos pensar em soluções que não envolvam necessariamente o aprisionamento. Mas é necessário entender como neste caso em específico a não tipificação penal vai continuar prejudicando uma das populações mais vulnerabilizadas socialmente no país. As pessoas que atacam LGBTs hoje são julgadas por qualquer coisa, menos pela discriminação que executaram. A geração de dados sobre a violência contra essa população também é prejudicada. Neste sentido, há importância em tipificar. Deveríamos ser a favor de não criminalizar o estupro, o racismo e o feminicídio, por exemplo? Acredito que não. Se não tratamos a LGBTfobia com a mesma gravidade, estamos hierarquizando opressões, algo extremamente equivocado.

Por outro lado, alguns militantes estão preocupados com o poder em excesso que se dá ao STF quando ele regula comportamentos na sociedade. Isso abriria espaço para, em um momento político complicado como estamos, que o Tribunal deliberasse sobre qualquer coisa, como a criminalização dos movimentos sociais. Não podemos esquecer que a discussão sobre o STF acabar atuando além das suas competências não é nova e já foi discutida outras vezes. Este caso em específico não traria nada de mais arriscado que outros que já foram julgados.

Por isso, precisamos pensar nas consequências práticas. Parar de trabalhar com a hipótese ideal de como deveria ser e trabalhar com a realidade: um LGBT é assassinado a cada 25h. Não há boas expectativas no Congresso Nacional em relação a qualquer garantia de direitos para a população LGBT. Pelo contrário, tenta-se inclusive criminalizar a nossa própria existência. Se formos continuar esperando leis serem votadas neste momento, vamos rifar as vidas principalmente de travestis e transexuais, as mais atingidas no país que mais mata LGBTs no mundo. Isso é distante de imaginar que a criminalização da LGBTfobia vai resolver o problema. Não vai. Diferentemente da direita, que prega brutalidade e prisão como soluções, nós sabemos das limitações. Mas mesmo assim é importante.

Além disso, a garantia simples das normas jurídicas não é sinônimo de uma sociedade mais justa. Em muitos momentos, inclusive, se faz malabarismos para favorecer os grupos mais poderosos. Precisamos focar na conquista de direitos sociais.

A insensibilidade com os direitos da população LGBTI na esquerda me assusta. Não podemos voltar a épocas em que se pensava que primeiro deve ser feita a revolução e só depois pensarmos na vida dessa “meia dúzia de veados que só incomodam com pautas identitárias”.

(*) Gabriel Galli é jornalista, mestrando em Comunicação Social, coordenador geral do SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade; e membro do grupo Freeda – Espaços de Diversidade.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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