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3 de outubro de 2017
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13:29

Que o desastre de Las Vegas não sirva para justificar uma ditadura online

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Sul 21
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Que o desastre de Las Vegas não sirva para justificar uma ditadura online
Que o desastre de Las Vegas não sirva para justificar uma ditadura online
Essa visão é um prato cheio para que governos no mundo inteiro criem políticas de vigilância em massa do que as pessoas fazem na internet com a justificativa de proteger a população. Na imagem, um poster de 1910 representando uma integrante do Partido Socialista Polonês.

Gabriel Galli

A semana começou com a notícia de que um homem de 64 anos abriu fogo contra a plateia de um show em Las Vegas, nos Estados Unidos, e depois provavelmente cometeu suicídio. Não demorou muito para que a opinião pública, em vários países, exigisse respostas duras a esse tipo de crime, num movimento já conhecido de demandar soluções rápidas e improváveis para situações complexas. Porém, uma das possibilidades que mais me preocuparam veio de alguns comentários de jornalistas brasileiros, que se repetiram quase da mesma forma: “Esse tipo de crime é imprevisível, já que é cometido por pessoas que moram no próprio país e não levantam suspeita. É uma verdadeira ameaça”.

Qual seria uma possível solução rápida e lógica para uma situação com esse perfil? Alguns dos comentaristas levantaram uma questão importante. Nesses casos, as medidas xenofóbicas de Donald Trump, de impedir a entrada e a vida de imigrantes com base na nacionalidade ou características físicas, não impediriam que os crimes fossem cometidos por “lobos solitários” que se identificam com alguma ideologia extremista. Essa visão é um prato cheio para que governos no mundo inteiro criem políticas de vigilância em massa do que as pessoas fazem na internet com a justificativa de proteger a população.

O cenário não é completamente novo. Depois dos ataques de 11 de setembro, George Bush assinou o “Patriot Act”, que, entre outras coisas, permitia que o governo interceptasse ligações telefônicas e e-mails de qualquer pessoa, dos Estados Unidos ou não, que fossem suspeitas de envolvimento com grupos terroristas sem qualquer necessidade de autorização da justiça. Barack Obama estendeu a validade da lei até 2015. Os ativistas Edward Snowden e Julian Assange, em diversas manifestações, denunciaram como esse tipo de legislação pode abrir possibilidades de monitoramentos de ações políticas ou das vidas de pessoas que simplesmente incomodam o governo.

Somado a isso, há um movimento global de pensar cidades inteligentes em que, entre outras ações, estimula-se a instalação de câmeras e sensores pelo ambiente urbano e o uso de softwares de reconhecimento facial, formando um grande banco de dados de informações. A justificativa é de que isso pode aumentar a segurança e facilitar a administração da cidade, o que é verdade. Porém, qual o preço pagamos ao saber que inclusive um governo municipal, algo extremamente próximo de nós, poderia ter um registro completo dos locais que estivemos e o que fizemos acessível em alguns cliques?

O que nós temos a ver com isso? Algumas pessoas diriam que não têm nada a esconder, mas a questão não é essa. Imagine o perigo que ativistas, líderes sindicais e qualquer pessoa que discorde das políticas de governo estariam submetidas com esse tipo de controle constante. Suas estratégias poderiam ser previstas, informações de históricos de uso de computadores e smartphones descontextualizadas, ajudando a criar uma narrativa de desconstrução da imagem com base em dados falsos, hábitos de compras e preferências de consumo, que já são catalogados e analisados atualmente, ajudando a prever formas de agir e pensar.

O que antes parecia cenário de ficção científica ou fruto da imaginação fértil de George Orwell na obra “1984”, começa a se tornar cada vez mais palpável e inquestionável. Grande parte dos nossos dados já são coletados e compartilhados entre empresas que os vendem para, por exemplo, inferir se você pagaria um empréstimo e decidir se é um bom comprador.

Daí a importância de legislações como o Marco Civil da Internet, uma das mais avançadas do mundo e criada de forma colaborativa em vários espaços, entre eles o Fórum Internacional Software Livre (FISL), que anualmente acontece em Porto Alegre. Porém, o principal desafio dessa lei é definir o que são dados pessoais e regulamentar o uso deles. O conceito ainda é genérico demais, o que tira as possibilidades práticas de proteção das pessoas. Grupos conservadores se movimentam do congresso às prefeituras, fazendo lobby para que seus interesses prevaleçam.

Se as minorias sociais já estão sendo escrachadas por intolerantes em praça pública, online e offline, o que faremos se eles chegarem ao poder e souberem absolutamente tudo sobre nossas vidas?

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Gabriel Galli é jornalista, mestrando em Comunicação Social, coordenador geral do SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade; e membro do grupo Freeda – Espaços de Diversidade. 

 


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