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26 de setembro de 2017
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13:47

A sociedade não quer lidar com o abuso sexual de crianças

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Sul 21
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A sociedade não quer lidar com o abuso sexual de crianças
A sociedade não quer lidar com o abuso sexual de crianças
E se nos preocupamos com a dignidade da vítima, por que grande parte das pessoas não viu problema em compartilhar o vídeo que a mostra sendo atacada, como se isso não fosse causar impactos que podem ser permanentes na vida dela? Imagem: “Crianças brincando”, de Portinari, 1938.

Gabriel Galli

Um homem de 62 anos abusou sexualmente de uma menina de cinco anos que tinha se distanciado da mãe por pouco tempo em um supermercado de Porto Alegre no último final de semana. A mãe, ao perceber a situação, gritou e alertou quem estava perto. O homem tentou fugir, mas foi impedido pelos seguranças da loja até a chegada da polícia. A história causou indignação, com razão, em milhares de pessoas, que compartilharam a foto do homem e o vídeo do abuso gravado por uma câmera de segurança.

Por mais que nós achemos que a sociedade está empenhada em resolver o problema do abuso sexual de crianças, suspeito que a energia de muitas pessoas esteja colocada em ações que não resultam em melhoras. Depois de ler a notícia na mídia, procurei ver o que se falava sobre o caso nas redes sociais. Verifiquei o grupo de moradores do meu bairro e os comentários nos posts dos principais veículos de comunicação. Grande parte das falas eram coisas como “divulguem o nome do abusador”, “castração química para esse demônio”, “vamos mandar para a cadeia que lá dão uma lição nele”. Nós precisamos mais do que isso para acolher vítimas do abuso e atacar o problema de uma forma que realmente seja relevante.

Eu realmente entendo a indignação. Pensar em uma criança vulnerável a uma situação tão grave é algo que mexe com nossas emoções. Não teria como ser diferente. É nossa obrigação defendê-las. Por isso mesmo, acredito ser necessário refletir sobre como o discurso fácil só mascara o problema e torna a situação pior.

Se estamos preocupados realmente com o abuso sexual de crianças, por que não aceitamos que vivemos em uma cultura do estupro e é por um reflexo dela que mulheres e jovens têm diariamente seus direitos humanos violados?

Se realmente nos incomoda, por que não lidamos com o machismo estrutural que faz com que não apenas crianças sejam estupradas, mas também coloca as mulheres adultas em vulnerabilidade durante tarefas do cotidiano, como andar pela rua ou andar de ônibus?

Se sabemos que grande parte dos crimes cometidos por pedófilos não chegam aos ouvidos do Estado, por que aceitamos que se ataque tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente em vez de garantir a dignidade dos jovens principalmente nas periferias?

E se nos preocupamos com a dignidade da vítima, por que grande parte das pessoas não viu problema em compartilhar o vídeo que a mostra sendo atacada, como se isso não fosse causar impactos que podem ser permanentes na vida dela?

Se sabemos que a pedofilia é uma condição que precisa de acompanhamento psicológico e psiquiátrico constante, por que aceitamos que nossa rede de acolhimento em saúde mental tenha tão pouca capilaridade e passe longe de atender com qualidade a maior parte da nossa população? E se reconhecemos a importância dela ser abrangente, por qual motivo aceitamos os movimentos do Ministério da Saúde em, aos poucos, desmontar o SUS?

Se entendemos que grande parte dos abusos sexuais de crianças acontecem na própria família e que também outras situações, como a discriminação por orientação sexual e de gênero e a violência doméstica, por que não conseguimos colocar nos planos municipais de educação o debate sobre relações de poder envolvendo gênero e sexualidade?

Se, enquanto sociedade, estivéssemos realmente preocupados com o problema, não daríamos soluções fáceis, mas estabeleceríamos políticas públicas que realmente tratem dele com a complexidade que merece.

Se você acha que a melhor solução para o abuso sexual de crianças é a pena de morte ou a castração química do abusador, desculpa, mas você não está preocupado em resolver o problema. Você só quer se vingar mesmo.

***

Gabriel Galli é jornalista, mestrando em Comunicação Social, coordenador geral do SOMOS – Comunicação, Saúde e Sexualidade; e membro do grupo Freeda – Espaços de Diversidade. 


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