Colunas>Flávio Fligenspan
|
16 de março de 2020
|
12:05

Quando a realidade se impõe

Por
Sul 21
[email protected]
Quando a realidade se impõe
Quando a realidade se impõe
Foto: Rodrigo Balladares M. /Minsal (fotospublicas.com)

Flavio Fligenspan (*)

A sobreposição de fenômenos que levam a um mesmo resultado e que, eventualmente, ainda se alimentam mutuamente exige cautela e discernimento na análise, para não se confundirem relações de causa e efeito e para não se enxergarem estas relações onde elas não estão presentes.

A economia internacional estava pronta para viver um novo episódio de grande crise, tal como o de 2008, há algum tempo, bastava apenas um detonador. Muitos analistas e operadores do mercado financeiro alertavam para isto desde pelo menos 2018; dizia-se que não cabia se perguntar se a crise viria, mas sim quando. É sempre difícil prever o exato momento do estouro de uma bolha e mitos e reputações se constroem em cima disso, porque alguns vão acertar e muitos vão errar.

O certo é que o mercado financeiro tinha muitos ativos inchados desde a crise anterior, justamente porque no intervalo entre 2008 e 2020 as políticas de recuperação do crash anterior puxaram os juros para baixo e concederam financiamento, favorecendo a aquisição desses ativos e sua supervalorização no mercado financeiro. Como nas chamadas pirâmides financeiras, não cabe perguntar se elas vão implodir, porque é certo que vão; a pergunta que interessa é quando isto vai ocorrer.

No caso presente o detonador foi a emergência do coronavírus e seu enorme impacto sobre os sistemas de saúde e sobre a atividade econômica, caracterizando ao mesmo tempo uma crise de oferta e uma de demanda. No meio do furacão dos últimos dias, ainda não se sabe que extensão isto vai ter na economia mundial nem quanto tempo vai levar para a normalização das atividades e das cadeias de suprimento.

Qualquer previsão sobre os efeitos da crise atual é muito arriscada, até porque se trata de algo desconhecido na história recente do desenvolvimento capitalista, isto é, os parâmetros econométricos dos momentos anteriores a este não valem agora. Assim, por exemplo, é difícil estimar o impacto sobre as taxas de desemprego e sobre os rendimentos, porque nos últimos anos aumentou muito a ocupação informal.

Falando sobre o Brasil, havia também uma bolha de ativos financeiros a espera de um detonador. Quem fez este papel aqui foi a conjugação da chegada do coronavírus nos países ricos com o estouro da bolha financeira deles. Nossa economia periférica rapidamente recebeu os respingos da gripe dos países centrais e se contaminou, até porque o quadro de fragilidade já estava exposto – bastava verificar a saída volumosa de capital estrangeiro da nossa bolsa desde o ano passado. De novo, a bolha ia estourar, só não se sabia exatamente quando.

O Governo Bolsonaro demorou um pouco para reagir e agora começa a fazê-lo timidamente, tanto na área da saúde como na economia. O fato é que não haverá alternativa, uma posição deverá ser tomada, visto que a realidade se impõe e exige respostas rápidas. O momento é bem ruim, porque o Governo é desorganizado, produz conflitos gratuitamente, enxerga fantasmas como se os problemas reais não fossem suficientemente grandes e ainda conseguiu bater de frente com o Congresso.

Na área da economia, a despeito da visão ortodoxa do Ministério, não haverá alternativa que não seja apoiar com muitos recursos os gastos em saúde e dar sustentação aos setores mais fragilizados pela crise. Houve alguma confusão inicial sobre o necessário aumento das despesas do Ministério da Saúde e um eventual descumprimento da lei do teto de gastos, mas a legislação permite abrir créditos especiais em situações de calamidade sem ferir a lei. Já foram anunciadas algumas medidas pontuais de estímulo à atividade, como o pagamento antecipado de metade do 13º de aposentados.

Projeta-se uma redução da taxa básica de juros na reunião do Banco Central desta semana, o que é bom do ponto de vista fiscal, porque o governo é o agente que mais paga juros na economia brasileira, via títulos da dívida pública, porém não terá efeito sobre a atividade. O patamar de juros já é o mais baixo da nossa história e se aproxima de zero, mas as empresas não vislumbram a expansão de seus mercados e, sem isso, não investem, seja qual for a taxa de juros. As famílias continuam pagando taxas elevadas no crediário e, se já vinham receosas de avançar no consumo de bens e serviços diante da incerteza do emprego, agora a situação fica ainda pior.

Os bancos públicos devem anunciar linhas especiais de crédito com volumes elevados e taxas baixas, principalmente para empresas de porte pequeno e médio, que não têm capital de giro para enfrentar uma interrupção significativa da demanda. Neste sentido, o Governo conta com a caixa e o Banco do Brasil, além do próprio BNDES que pode ter que lançar mão dos recursos programados para serem devolvidos ao Tesouro, de acordo com o processo de “emagrecimento” programado do Banco. Reverter-se-ia, assim, um dos símbolos da política econômica do Governo Bolsonaro.

Provavelmente não seja esse o único símbolo a cair nos próximos meses, já que a crise vai ser pesada e vai exigir atuação firme e ampla do Estado. Trata-se de uma escolha: se agarrar aos princípios da ortodoxia do Estado mínimo ou se adaptar à realidade econômica e política de uma sociedade muito desigual e com uma frágil rede de apoio.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora