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13 de janeiro de 2020
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12:52

A São Silvestre do IPCA

Por
Sul 21
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Preços dos alimentos pesam mais entre os 10% mais pobres. (Foto: Agência Brasil)
Preços dos alimentos pesam mais entre os 10% mais pobres. (Foto: Agência Brasil)
“Perder a batalha da inflação numa economia deprimida é bem diferente de sofrer uma derrota num ambiente de crescimento”. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Foi emocionante o final da prova masculina de São Silvestre no último dia do ano passado. Um atleta de Uganda dominava a prova com tranquilidade no último trecho, tanta tranquilidade que esqueceu de olhar para trás, para verificar se sofria alguma ameaça de outro competidor. Pois eis que, num impressionante pique na reta final, surgiu um atleta queniano (Kibiwott Kandie) e “roubou” a vitória do ugandês, praticamente no último metro, deixando o adversário estupefato, quase sem entender e quase sem acreditar no que tinha acontecido. De onde surgiu aquele competidor “traiçoeiro” que lhe tirou a vitória da mão?

Impossível deixar de associar tal desfecho do evento esportivo com o que se viu “nos últimos metros” da corrida inflacionária de 2019 no Brasil. Vinha a meta do IPCA (4,25%) fazendo tranquilamente seu trajeto em direção à marca da vitória quando foi atropelada pelo IPCA de dezembro (1,15% apenas no mês) que elevou o acumulado no ano para 4,31% e lhe “roubou” a vitória. Resultado: pela primeira vez desde 2016 o IPCA ficou acima da meta, ainda que marginalmente acima.

Porém, diante das circunstâncias, isto é, do ambiente econômico de baixo crescimento, alto desemprego e alta ociosidade dos fatores de produção, o resultado ganha uma dimensão maior. Permanecendo na metáfora esportiva, é como um time da primeira divisão perder um jogo fácil, para um time da segunda divisão, quando se esperava uma goleada do primeiro. Perder a batalha da inflação numa economia deprimida é bem diferente de sofrer uma derrota num ambiente de crescimento e pressão sobre os preços. Temer, por exemplo, fez questão de manter a atividade em baixa, para poder entregar um resultado bom no que se refere à inflação. Para tanto, reduziu os juros muito lentamente, abrindo mão de reativar a economia, melhorar o resultado das empresas e diminuir o desemprego. Ele sacrificou a economia e o social para não perder a batalha da inflação.

Houve responsáveis pela derrota em 2019, o maior deles a variação dos preços das carnes em novembro e dezembro, principalmente pela pressão do mercado internacional depois que a China aumentou suas importações em função dos seus problemas de escassez da oferta doméstica, ocasionados pela peste suína que se abateu sobre seus rebanhos. Planos de saúde, energia elétrica e tarifas de ônibus urbanos também ajudaram a puxar o IPCA no Brasil. A “derrota” da meta nos últimos momentos do ano expressa dois problemas do nosso sistema de metas de inflação: a busca do objetivo no ano calendário e a tomada do índice pela sua medida cheia e não pelos seus núcleos.

O primeiro problema faz com que o Banco Central não tenha tempo para corrigir acidentes que ocorram na segunda metade do ano; se o intervalo de tempo para chegar ao objetivo fosse mais longo ou maleável, haveria mais tempo para a correção pelo aumento dos juros, ainda que se possa discutir o uso deste (quase) única medida de ajuste. Sobre o segundo problema, o uso dos núcleos permitiria retirar do índice os produtos com tradição de alta volatilidade, como hortifrutigranjeiros e itens ligados à energia, tornando-o mais estável ou menos errático, o que exigiria ajustes mais suaves da política econômica.

Várias consequências derivam de termos extrapolado a meta em 2019. Uma delas, de repercussão imediata, é acender um sinal de alerta para a próxima reunião do Comitê de Política Monetária a ser realizada no início de fevereiro. Antes do resultado do IPCA já havia uma especulação de que o ciclo de rebaixamento da taxa de juros básica teria se esgotado na última reunião, do início de dezembro, quando a Selic caiu de 5% ao ano para 4,5% ao ano. Lembrando, este ciclo começou no segundo semestre de 2016, quando a taxa estava em 14,25% ao ano, e em dezembro muita gente ainda apostava na continuidade da política de redução.

Contudo, os últimos acontecimentos da economia e da política mundiais, que trazem muita incerteza sobre o futuro imediato e aumentam as chances de diversos fatos negativos acabarem repercutindo no Brasil, agora se somam a este pequeno insucesso sobre a meta de 2019 para colocarem uma dúvida significativa sobre a continuidade do longo ciclo de queda dos juros. Agora cada vez menos agentes do mercado financeiro apostam numa próxima redução. O ciclo teria se esgotado, deixando um problema na mão dos gestores da política econômica: se a política fiscal passou a ser um dogma intocável – no que se refere aos gastos – e os juros chegaram ao seu ponto de mínimo, estreita-se a margem de manobra para estimular o crescimento. Continuará o apelo ao efeito positivo das reformas, mas é sabido que seus resultados não se verificam com a velocidade necessária pelo tempo político. Vai que um “queniano” passe correndo na reta de chegada!

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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