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30 de dezembro de 2019
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10:18

A marcha da informalidade

Por
Sul 21
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A marcha da informalidade
A marcha da informalidade
Avançou a informalidade e a precarização das relações de trabalho no País | Foto: Luiza Castro/Sul21

Flavio Fligenspan (*)

Na última sexta-feira (27), o IBGE fez a última divulgação do ano das informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Contínua (PNAD). Ela cobre o trimestre setembro-outubro-novembro e mostra uma suave melhora no mercado de trabalho brasileiro, em parte devido à sazonalidade do final de ano, que sempre abre vagas adicionais no comércio e na indústria, e em parte devido à melhora conjuntural da atividade econômica, ainda que muito frágil.

Assim, aumentou marginalmente a taxa de ocupação e diminuiu o desemprego, apesar de ainda termos quase 12 milhões de desempregados no País. Confirmando-se o mesmo ritmo de crescimento da economia que temos visto nos últimos anos, ou mesmo algo um pouco maior, a recuperação do emprego a ponto de reduzirmos substancialmente a taxa de desocupação vai demorar muito; e isto o próprio Governo reconhece, como se não fosse responsável pelo assunto e como se os números ruins não gerassem enorme desgaste político.

O IBGE chamou atenção para o fato de que o número atual de ocupados (94,4 milhões) é o mais alto da série histórica da PNAD, desde o início de 2012, passando, portanto, pelo pico anterior, de 2014, quando a crise recessiva ainda não tinha batido forte na ocupação. Entre 2015 e 2016 tivemos queda da ocupação e a partir do início de 2017 vivemos uma leve retomada. A pergunta que fica para o observador comum, não atento ao detalhamento do mercado de trabalho, é: como é possível uma recuperação do número global de ocupados, com um novo pico da série histórica, se o PIB de 2019 ainda vai fechar cerca de 3% abaixo do de antes da recessão, no início de 2014. Ou seja, pode a ocupação crescer sem a correspondente expansão da atividade econômica?

A resposta passa por pelo menos dois temas relevantes do debate sobre o mercado de trabalho. O primeiro deles faz uso da classificação dos dados de acordo com o que o IBGE chama de “posição na ocupação”, procurando-se observar quais tipos de ocupação têm gerado novas vagas e quais têm reduzido seu contingente. A análise estatística não deixa dúvidas, nos últimos anos cresceram as ocupações consideradas informais em detrimento das formais. Comparando-se os números recém divulgados pelo IBGE, os do trimestre terminado em novembro de 2019, com seus correspondentes de 2016 (quando o mercado de trabalho começava a reverter seu pior momento), o que se verifica é um aumento global da ocupação de 5,1%, correspondendo a 4,6 milhões de ocupados.

Este número é um saldo, resultado de aumentos e diminuições de postos em diversas formas de inserção no mercado de trabalho. As variações negativas mais relevantes são uma queda de 542 mil empregos no setor privado com carteira assinada no intervalo de três anos, uma queda de 200 mil vagas no emprego doméstico com carteira assinada e uma queda de 190 mil vagas de empregados formais no setor público – estatutários e militares.

Por outro lado, no mesmo intervalo de três anos, as variações positivas foram de 1,4 milhão de novos empregados no setor privado sem carteira assinada, 503 mil empregos domésticos sem carteira assinada, 452 mil empregados sem carteira no setor público e o impressionante número de 1,8 milhão de novas ocupações por conta própria sem CNPJ, isto é, sem registro formal, pessoas que passaram a tentar sustentar suas famílias “do jeito que deu”, boa parte delas se incorporando ao que se convencionou chamar de “processo de uberização”. Estes trabalhadores por conta própria sem CNPJ perfazem hoje 21% do total de ocupados do País, quase a metade dos classificados como informais.

Esta visão geral do balanço de ocupações criadas e destruídas recentemente não deixa dúvidas, avançou a informalidade e a precarização das relações de trabalho no País, o que deve ser resultado de uma atividade econômica prolongadamente frágil em combinação com as mudanças da legislação que abriram espaço para a desregulamentação do mercado de trabalho. A flexibilização da terceirização e a implantação de regras para o trabalho intermitente, da reforma trabalhista de Temer em 2017, estão cumprindo rigorosamente seu papel.

Observe-se que o trabalho intermitente ajuda em muito a explicar a dicotomia entre o crescimento da ocupação e o do PIB, visto que o trabalhador subocupado, que trabalha bem menos do que gostaria e necessitaria e ganha igualmente bem menos, conta como ocupado, mas, a despeito de sua vontade, produz muito pouco para o crescimento da economia. Assim, cresce a ocupação, em geral informal, mas quase não cresce o PIB.

A segunda forma de responder à questão da dicotomia é através da observação da variação do número de ocupados por setores de atividade e seus diferenciais de produtividade. A Indústria, atividade com tradição de maior formalização do emprego e maior produtividade, teve acréscimo de 603 mil vagas em três anos, mas, em troca um grupo de cinco atividades de baixa produtividade ligadas ao Comércio, Transportes, Alimentação, Alojamento e Serviços teve acréscimo bem maior, de 2,7 milhões de ocupações. Ora, se as atividades com menor produtividade crescem mais, isto é, ocupam mais mão de obra, mas não agregam tanto valor, é natural o descolamento entre o crescimento do PIB e o da ocupação. Na verdade, as duas formas de ver a dicotomia correspondem a uma aproximação do chavão “duas faces da mesma moeda”, visto que as ocupações informais – que mais cresceram nos últimos anos – são normalmente as de menor produtividade. Expressa-se, assim, a realidade do mercado de trabalho no Brasil, em que 44% dos ocupados estão na informalidade.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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