Colunas>Flávio Fligenspan
|
14 de outubro de 2019
|
13:49

Vendedores de ilusões

Por
Sul 21
[email protected]
Vendedores de ilusões
Vendedores de ilusões
Arquivo/Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

Não é por pouca coisa que economistas por vezes são odiados pela população. Sem conseguir entender que existem diferentes correntes de pensamento econômico, o cidadão comum associa o saber econômico com os economistas do governo do presente ou do passado recente, com seus planos, seus sucessos e seus fracassos. Na sua forma de ver o mundo, o homem comum acredita que a ciência econômica é representada pelo que produzem os economistas que atuam no governo, ao lado do presidente ou do primeiro ministro que dirige determinado país. Como em várias ocasiões a realidade teima em negar o que os técnicos diziam que iria acontecer, por vezes exigindo doses de sacrifício prévio da sociedade, nada mais justo que crucificar a “ciência”.

Os sucessivos (e frustrados) planos de controle da inflação dos anos 1980 e 1990 no Brasil servem bem para ilustrar o que foi dito. Desconhecimento da amplitude das ações que se estavam tomando e dos efeitos que viriam pela frente fez os economistas na gerência daqueles planos prometerem o que não poderiam garantir – inflação sob controle – e solaparam a confiança inicialmente depositada. Junto com ela foi-se a esperança de dias melhores e de uma sociedade mais justa e igualitária, sem a inflação elevada que corroia o poder de compra da população.

Naqueles episódios do final do século passado havia um pouco de ignorância técnica, um pouco de onipotência e um pouco de arrogância dos técnicos por trás dos planos. Combinadas com uma dose de voluntarismo que chegou a criar os “fiscais do Sarney”, achando que a população conseguiria fiscalizar preços congelados por vários meses, é certo que tais características não poderiam levar a bons resultados. Mas, me parece que naqueles momentos mais estavam presentes as “qualidades” referidas do que a má intenção ou a vontade de ludibriar. Isto é, com exceção de alguns episódios, os erros de quem dirigia a economia brasileira foram em geral mais genuínos e inesperados do que previsíveis e planejados.

Mais recentemente a situação mudou e o discurso oficial é menos autêntico e menos ingênuo. Promessas sabidamente inexequíveis aparecem com mais frequência no dia a dia do noticiário econômico. Lembro da avalanche de argumentos sobre a perda de confiança do Governo Dilma e de como tal situação seria fácil e rapidamente revertida a partir do impeachment e da assunção de Temer. Logo as empresas tirariam seus planos das gavetas, resgatando das trevas nossa taxa de investimento, o que faria a economia voltar a crescer a taxas elevadas. Nada disso aconteceu.

Com Temer a reforma do mercado de trabalho, com mais flexibilidade e menos direitos, logo faria com que as empresas contratassem mais, o que traria mais emprego e renda, ajudando a recompor o consumo e a produção num círculo virtuoso de crescimento. A tal reforma ainda se somaria a “lei do teto dos gastos”, que disciplinaria os gastos públicos, novamente devolvendo confiança ao mercado, já que a contenção fiscal seria um pré requisito exigido pelos investidores. Nada disso aconteceu e continuamos vivendo a recuperação pós crise mais longa de nossa história, sem nenhuma perspectiva positiva concreta a curto prazo.

Em 2019 mudou a promessa. Agora seria a aprovação da reforma da previdência que devolveria a confiança necessária para destravar grandes planos de investimento, inclusive na falida infraestrutura, e retomar a atividade. Todos que defenderam tais idéias, sejam as lideranças políticas ou os economistas que atuaram no governo, sabiam bem o que estavam fazendo e conheciam os estreitos limites de tais ações em relação ao crescimento. Sabiam também quem seriam os beneficiários e os prejudicados.

Junto com a reforma da previdência, prometia-se que a tão esperada redução da taxa de juros, redirecionando aplicações financeiras dos tradicionais e garantidos títulos públicos para o mercado de títulos privados – que associam maior rentabilidade a maiores riscos –, seria suficiente para alavancar mercados como o de ações. Não é o que se tem visto, pois a falta de crescimento da economia brasileira não está oferecendo segurança aos aplicadores de que seus recursos serão devidamente valorizados no mercado financeiro e no mercado de capitais privados.

Nem mesmo o viés liberal da equipe econômica gera a confiança que induziria a expansão do PIB, sem o que a valorização do capital perde seu lastro real, restando apenas um efeito especulativo. Ainda que este efeito proporcione ganhos por algum tempo, é certo que um dia eles serão revertidos, como no velho jogo em que a música para de tocar e algum ou alguns participantes perdem seu lugar nas cadeiras. O problema é que não há crescimento; e não há crescimento porque a política econômica atual é ineficaz para criar demanda.

No campo do crescimento econômico sustentado não há mágica possível nem falsa confiança embalada por promessas vazias. Enquanto os representantes do grande capital reconhecem os espaços autênticos de valorização e sabem se proteger, o cidadão comum, vulnerável ao discurso oficial, fica propenso a correr mais riscos. Se der errado, resta classificar os economistas, genericamente, como vendedores de ilusões.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora