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7 de outubro de 2019
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13:05

Contas públicas e ideologia

Por
Sul 21
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Contas públicas e ideologia
Contas públicas e ideologia
Bolsonaro e Paulo Guedes. Foto: Isac Nóbrega/PR

Flavio Fligenspan (*)

Na coluna anterior (“O superávit primário não é um valor em si”, de 23 de setembro de 2019) eu dizia que a diferença entre receitas e despesas públicas, sem considerar a conta de juros sobre a dívida pública, é normalmente usada para pagar parte dos juros anuais devidos pela colocação de títulos públicos. Assim, o chamado superávit primário, que representa um esforço da sociedade sob a forma de menos gastos (menos serviços públicos), não vale por si, mas pelo alívio que ele proporciona na conta de juros da dívida pública. Se uma sociedade não produz este superávit, a conta de juros terá que ser “rolada” pela emissão de mais dívida, ou seja, pela emissão de novos títulos que vão aumentar esta conta nos próximos anos.

Trata-se, portanto, de uma troca ou escolha temporal: economizar recursos no presente para reduzir a dívida ou se endividar menos, diminuindo a conta de juros no futuro, ou, alternativamente, gastar mais no presente e aumentar o volume de juros pagos no futuro. A segunda opção é, nitidamente, uma transferência de responsabilidade para as gerações futuras, tal como os governos passados fizeram com a sociedade atual. Claro que as relações não são assim tão simples ou lineares; e soluções como a do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), da metade da década de 2000, podem fazer uma espécie de “negociação” com o tempo, tal como comentado na coluna anterior.

Uma forma usual e sintética de avaliar se um país está muito endividado é a observação da relação entre a dívida e o tamanho desta economia, ou seja, o PIB. Esta relação dívida/PIB costuma ser acompanhada atentamente pelos credores do Estado, sejam nacionais ou estrangeiros, justamente para que eles analisem a real capacidade do Estado honrar seus títulos, isto é, deles receberem seu dinheiro de volta, com os juros devidos. É claro que uma relação sintética não diz tudo sobre a capacidade de pagamento da dívida pública, mas acompanhada de outros indicadores, pode dar uma noção fidedigna do risco que os credores correm.

A relação dívida/PIB cresceu nos últimos anos no Brasil, até mesmo porque a recessão de 2014 a 2016 e o baixíssimo crescimento desde então diminuíram as receitas públicas, o que gerou déficits primários anuais e “rolagem” da dívida. Além disso, a taxa de juros relativamente alta ajudou a compor a piora da relação. Na medida bruta, a relação dívida/PIB hoje no Brasil está em torno de 80%, considerada alta, mas que não causa pânico nos credores. Não se vê credores nacionais ou estrangeiros fugindo do sistema financeiro com medo de não recuperar seus recursos, e a taxa de juros – um indicador de risco – está nos níveis mais baixos da história. É possível até ir além e dizer que os credores continuarão confiando na economia brasileira se ela mostrar que, a despeito do crescimento recente da relação, as projeções mostram que ela é estável no futuro.

Ainda assim, o Ministério da Economia demonstra obsessão por produzir superávits primários nos próximos anos, e a forma preferencial de se chegar a este resultado é pelo corte de gastos em uma infinidade de programas da área social. Ocorre que especialistas em finanças públicas, lançando mão de modelos macroeconômicos para o Brasil, têm feito simulações sobre o futuro da relação dívida/PIB diante da combinação entre duas variáveis decisivas, a taxa de juros que incide sobre a dívida pública e o crescimento do PIB. Quanto menor a taxa de juros, menos resultado primário é necessário para que a relação se estabilize, já que a conta de juros anual também será menor. E quanto maior o crescimento da economia, novamente menor deve ser o resultado primário necessário para que a relação se estabilize, já que o denominador da fração (relação dívida/PIB) aumenta. E neste caso, do aumento do PIB, o sacrifício da sociedade será menor, visto que com mais atividade econômica, as receitas públicas crescem, gerando naturalmente um resultado fiscal ampliado.

Com algumas outras premissas, como uma inflação bem comportada, as simulações com a combinação de várias taxas de juros e várias taxas de crescimento da economia mostram diferentes cenários para a evolução da relação dívida/PIB. Um cenário médio aceitável para os próximos dois a três anos é de uma taxa de juros em torno de 5% ao ano e um crescimento da economia em torno de 2% ao ano. Pois bem, com estes números a relação ficaria estável no Brasil sem precisarmos de superávits primários; até mesmo pequenos déficits seriam possíveis.

Se isto é verdade, qual o sentido da pregação sobre a necessidade de se encolher o gasto público para produzir superávits? Independentemente de se buscarem aumentos de produtividade dos serviços públicos, racionalização dos gastos e medidas de eficiência dos projetos, não tem porque impor sacrifícios à sociedade carente de mais e melhores serviços públicos. O sentido da pregação governamental não encontra embasamento nas contas e nas projeções dos especialistas, mas sim na posição ideológica da redução do tamanho do Estado e na passagem das suas atividades para o setor privado em busca de melhorar seus resultados.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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