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22 de abril de 2019
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11:25

Por trás da confusão, um projeto

Por
Sul 21
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Por trás da confusão, um projeto
Por trás da confusão, um projeto
Paulo Guedes e Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução/Instagram)

Flavio Fligenspan (*)

A desorganização política do Governo Bolsonaro, com diferentes grupos em disputa aberta e a demonstração quase diária de incapacidade de coordenação de ações, dá margem a diversas interpretações, desde a impossibilidade de o Governo durar muito mais tempo até a idéia de que o Governo não tem um projeto definido para o País, ou seja, caminha sobre uma linha instável de curto prazo, tentando resolver problemas dia a dia e, muitas vezes, criando os próprios problemas quando não precisava. É claro que enxergo o óbvio, a desorganização política não só do Governo, mas do País como um todo, envolvendo os três poderes, numa mistura de inépcia, infantilidade, autoritarismo e excesso de vaidades. Mas não creio na interpretação de falta de projeto, especialmente quando olho para a área econômica.

Na economia há projeto sim, bem definido e explícito. Ele tem como referência virar as costas para o problema mais importante da vida nacional, a histórica desigualdade de renda. E isto aparece em várias frentes, da proposta de reforma da previdência à tributária, passando pela (des)regulamentação do mercado de trabalho e pelo processo de privatizações e redução do tamanho do Estado. Por onde se olha, é fácil ver a intenção do Governo contrária ao atendimento da população mais carente e favorável ao grande capital, não importando se de origem nacional ou estrangeira. Se não, vejamos.

Na proposta de reforma de previdência, a despeito do discurso governista de “acabar com privilégios”, o que se vê são várias medidas que atingem a camada mais baixa da distribuição de renda, seja através dos cortes do BPC, da redução da idade mínima, da forma de cálculo dos benefícios, da aposentadoria rural e da desvinculação das aposentadorias e pensões do valor do salário mínimo. A manifestação do Presidente do IPEA no último sábado (20.4), em entrevista para a Folha de São Paulo (p. A15), não deixa dúvidas. Disse ele que: “… a reforma da Previdência tem por trás, […], um saco de maldades. Vai atingir o velho, o aposentado”. Esta é a voz de um economista muito próximo do Ministro da Economia e escolhido diretamente por ele para comandar um importante e respeitado instituto de pesquisa do Governo Federal.

Além disso, se estuda a retirada da contribuição previdenciária das empresas, com o argumento de que uma carga menor sobre a folha de pagamentos aumentaria o emprego. Mas não se responde à pergunta sobre o impacto desta medida nas contas da previdência, justamente no momento em que o novo modelo de capitalização tiraria um volume imenso de recursos do sistema. Sobre este ponto, está claro desde as primeiras manifestações do Ministro da Economia que o objetivo é oferecer ao sistema financeiro uma massa enorme de recursos poupados pelos trabalhadores da parte de cima da pirâmide, por um longo tempo sem necessidade de contrapartida, visto que levaria anos para que os primeiros a aderirem ao novo modelo chegassem à aposentadoria. O que não está respondido é como equacionar o imenso custo de transição desta transformação, uma vez que o rombo apareceria no curto prazo, quando as contribuições dos trabalhadores de classe média alta deixariam de financiar as aposentadorias do sistema de repartição em andamento.

Por sua vez, a interrupção da política de valorização real do salário mínimo é um golpe fatal nos segmentos médios e inferiores da pirâmide de renda. É sabido o quanto a renda destas camadas está direta ou indiretamente ligada ao valor do mínimo e quanto a política anterior foi decisiva para melhorar o Índice de Gini do Brasil nos últimos quinze anos. Pois bem, com o objetivo de produzir resultados nas contas da previdência, a partir de 2020 o reajuste do mínimo será reajustado apenas de acordo com a taxa de inflação do ano anterior.

Do que se sabe até agora, as mudanças tributárias propostas visam à simplificação e agilidade da arrecadação, o que é muito bom e melhora as condições de competitividade das empresas brasileiras, além de incluir segmentos da economia informal. Contudo, não há praticamente nenhum sinal do uso da tributação com o objetivo de diminuir a desigualdade, taxando mais as rendas e o patrimônio da população mais abastada e diminuindo a carga sobre as camadas mais pobres. Pelo contrário, trabalha-se com a possibilidade de diminuir as alíquotas mais altas do Imposto de Renda, com o argumento tradicional nestes casos de que desta forma se propicia o aumento dos investimentos das empresas controladas por famílias de mais alta renda.

Sobre a continuidade do processo iniciado por Temer, de desregulamentação do mercado de trabalho, as propostas são bastante claras, em especial a que introduz a carteira de trabalho verde-amarela, com redução de direitos e flexibilidade dos contratos. A consequência imediata será a redução dos rendimentos médios, inclusive pela queda do volume de horas trabalhadas. Tal como a reforma que introduziu o FGTS nos anos 1960, o novo sistema de contratação será adotado na totalidade dos casos pelas empresas, sem opção pelos trabalhadores.

Enfim, por qualquer ângulo que se observem as várias propostas econômicas do Governo, é fácil identificar a quem prejudicam e a quem favorecem. Não acreditando em tamanha coincidência de resultados contra os interesses dos mais pobres, a conclusão inevitável é de que há um projeto bem delineado, sequer ofuscado pela confusão política estabelecida nestes primeiros meses.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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