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7 de janeiro de 2019
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10:28

Ortodoxia versus realidade

Por
Sul 21
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Ortodoxia versus realidade
Ortodoxia versus realidade
Paulo Guedes, ministro da Economia. (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Flavio Fligenspan (*)

Com quarenta anos de profissão e tendo frequentado diferentes ambientes, posso dizer que conheço economistas ortodoxos de diversas escolas, à direita e à esquerda. Alguns são liberais ortodoxos, verdadeiros idealistas que acreditam mesmo nas suas concepções de mundo e nas propostas de políticas para o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida da população. Há também os enganadores, e não são poucos no Brasil; liberais só no discurso, prontos para se aproveitarem das vantagens da propagação de idéias em que no fundo não acreditam.

O problema dos verdadeiros liberais, tal como o dos ortodoxos e religiosos de vários credos, é que eles não se adaptam bem à realidade, normalmente multifacetada, em especial se ela insistir em contrariar suas idéias pré concebidas. Não duvido de suas boas intenções e sou testemunha de seus esforços desprendidos em favor da sociedade, mas a crença quase cega num sistema de valores que parece ter lógica interna própria e bem fechada os impede de ver o quanto o mundo real se afasta de suas convicções. É como se apaixonar por uma história tão bem contada e tão bonita que pouco importa se ela é verdadeira ou não.

Na literatura, no cinema e nas artes em geral é permitido e até desejável “voar”, descolar da realidade, imaginar mundos diferentes e propor soluções mágicas. Na economia e na política não. Quem descola é punido, seja pelos mecanismos da Justiça, seja pelas urnas.

O novo Ministro da Economia, até há pouco desconhecido da grande maioria da sociedade brasileira, tem se mostrado em vários momentos um economista convicto de sua formação liberal ortodoxa, mas sua longa carreira no mercado financeiro também já deve ter lhe colocado diante de situações em que seu discurso foi além de suas crenças. Quando compra brigas com empresários que classifica como sanguessugas do Estado, quando prega privatizações a rodo e quando “exige” uma reforma previdenciária forte mostra-se um liberal autêntico. Nestes casos, ele acredita tanto na importância do que está pregando, sua convicção é tão forte de que assim é possível “salvar” o Brasil, que tudo mais deve ser posto de lado.

No seu modo de ver o mundo, a demonstração da lógica interna de suas propostas e dos resultados deve ser suficientemente robusta para angariar apoios na sociedade e no Congresso. O sacrifício da sociedade deve reverter em um futuro melhor e, por isso, ele vale à pena. Seja por um verdadeiro sentimento de estar colaborando para este futuro melhor, seja por vaidade, o homem público tem obrigação de se empenhar para que seu modo de ver os problemas leve à solução.

Contudo, o Ministro deixa a porta aberta para um possível choque de realidade, uma espécie de seguro contra a probabilidade de não obter sucesso, pelo menos numa primeira tentativa de passar a reforma da previdência. No mercado financeiro isto seria um hedge. Na semana passada, nos primeiros dias do Governo, em meio à desorganização de declarações do Presidente e desmentidos de assessores sobre mudanças tributárias, o Ministro declarou que, se o Congresso não aprovar a reforma da previdência (ainda resta saber qual das muitas propostas comentadas nos últimos meses), os deputados e senadores terão que assumir a responsabilidade sobre seu ato e aprovar outra reforma constitucional, a que desvincula receitas e gastos.

Isto é, se não lhe oferecerem a folga fiscal com a previdência, devem lhe oferecer uma alternativa. Sem esta margem de manobra não haverá como governar; os congressistas devem entender seu papel na administração pública e passar a ter o protagonismo, verdadeiramente dividindo responsabilidades com o poder executivo na difícil tarefa de administrar o funcionamento do Estado. Não é mais possível apenas o Executivo administrar a escassez do orçamento e receber todas as críticas da sociedade.

De acordo com um modelo pré concebido, de uma relação madura entre os poderes de uma democracia liberal, cada um deve fazer a sua parte em prol do objetivo comum. Se a primeira opção de reforma constitucional, a reforma previdenciária, falhar, que se aprove a alternativa. É curioso pensar como esta sequência lógica funcionaria no Congresso. Os parlamentares negariam a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da previdência, seja por não assumirem a impopularidade da medida, seja porque não se achariam contemplados pelo Governo nas suas tradicionais demandas, mas estariam dispostos a aprovar outra PEC igualmente impopular e que mexe com seus interesses eleitorais. Seria isto sensato? De acordo com a visão do Ministro, o Congresso teria um ataque de maturidade e mudaria seu papel na história do Brasil?

E se não funcionasse a segunda opção, o que faria o Ministro? Provavelmente diria que a sociedade brasileira é imatura, não entendeu a real dimensão do problema e não está preparada para assumir as responsabilidades que o modelo teórico impõe. Neste caso, não lhe restaria alternativa que não desistir da tarefa e voltar à sua bem sucedida atividade profissional anterior. Afinal, se o modelo teórico e a realidade não se “acertam”, só pode ser porque a sociedade (realidade) não se adaptou devidamente ao modelo e não cabe insistir com quem não se mostra digno de reconhecer o esforço de quem trabalhou pelo ajuste. Porém, os homens públicos também têm suas responsabilidades e uma delas é entender que suas crenças e seus modelos, por mais lógicos e bem explicados que pareçam, devem sempre passar pelo teste da realidade.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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