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24 de setembro de 2018
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12:44

A “Carta” de Haddad ao Povo Brasileiro        

Por
Sul 21
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A “Carta” de Haddad ao Povo Brasileiro        
A “Carta” de Haddad ao Povo Brasileiro        
Fernando Haddad (Ricardo Stuckert/IL)

 Flavio Fligenspan (*)

Como todos lembram, depois de perder consecutivamente três eleições presidenciais – em 1989, 1994 e 1998 –, em 2002 Lula inventou o personagem “Lula light” e lançou a “Carta ao Povo Brasileiro”, desvencilhando-se do discurso e da postura radical que o caracterizara como político até aquele momento. O Lula anterior a 2002 foi um líder sindical destacado, formado na dificuldade da luta contra a ditadura, que cumpriu um papel histórico ao conseguir formar e colocar de pé o PT, partido que rapidamente ganhou musculatura e se fez respeitar no Parlamento e na sociedade. Muitos não acreditaram que isto seria possível num País tão conservador como o Brasil.

As três derrotas haviam mostrado fatos políticos significativos. Um deles, super positivo, o PT tinha conseguido chegar a cerca de 30% dos votos nos melhores momentos, algo impensável quando de sua fundação poucos anos antes. Contudo, por mais que este percentual seja elevado, tudo indicava que ele representava um “teto” e, claro, não era suficiente para vencer as eleições. Não teria sentido continuar insistindo sem alterar os parâmetros da relação entre o partido e a sociedade brasileira. Foi exatamente o que Lula fez em 2002, mostrando sua enorme perspicácia e a vontade de chegar ao poder e cumprir seus projetos. E o fez já com o símbolo que foi a escolha de José Alencar para seu candidato a Vice, empresário nacional de porte que daria aval à nova postura do partido e do candidato.

Claro que só isto não bastou para evitar o receio de um governo petista: a elevação da taxa de câmbio e do risco país mostrou claramente o quanto ainda havia a ser feito para efetivamente conquistar a confiança do mercado a da sociedade. Não foi um início tranquilo, aliás, nada fácil nem no plano econômico nem no político. A sequência de governos do PT é conhecida, com seus erros e acertos, com um olhar especial às camadas de mais baixa renda e com crescimento com redistribuição de renda, a marca maior. Os medos e as desconfianças daquele período já longínquo, início do século, se dissiparam; mas outros se formaram com base na experiência concreta de governos petistas. Alguns são verdadeiros, outros são meias verdades, preconceitos e a eterna manifestação do forte conservadorismo da sociedade brasileira.

São contra estes novos receios que Lula e Haddad estão lançando – simbolicamente, não como na versão de 2002 – uma nova Carta ao Povo Brasileiro. A primeira parte da “Carta” é a própria escolha de Haddad como candidato, por seu histórico de moderação e negociação, ao contrário de visões mais inflamadas e de conflito. O ambiente político já está suficientemente conflituoso e radicalizado desde pelo menos a última eleição presidencial. A capacidade de negociar à exaustão vai ser um atributo de primeira ordem do novo Presidente, seja para acalmar os ânimos, seja para fazer passar medidas difíceis num Congresso de baixa qualidade e de interesses mais pessoais do que sociais.

Uma segunda parte da “Carta” é admitir os problemas fiscais do País e demonstrar ter certeza da necessidade de uma reforma previdenciária atrelada a uma reforma tributária. Uma não vem sem a outra, porque se trata de discutir quem vai pagar a conta, quem não pode ser prejudicado e em que intervalo de tempo vamos administrar o ajuste necessário, nem tão rápido que não se ofereça oportunidade de acomodação das novas regras sem causar traumas, nem tão devagar que não se sinta o ajuste. Não é razoável uma mudança às pressas da questão fiscal sob o argumento de que chegamos ao limite da relação dívida/PIB e que os credores não vão mais nos financiar, causando imediata alta dos juros e inflação. Há tempo, desde que se mostre firmeza de propósitos e que se comece a caminhada com metas claras no médio prazo.

E uma terceira parte da “Carta” trata da necessidade, esta sim com muita pressa, de retomar o crescimento e com a liderança da atividade industrial, em rota de destruição nos últimos anos. Acumularam-se erros nesta área, desde uma taxa de câmbio fora do lugar até os problemas de financiamento e de capacitação de pessoal para a nova etapa mundial da indústria 4.0. Tal como a famosa frase de pára-choque de caminhão que diz que “dinheiro não traz felicidade, mas acalma os nervos”, crescimento e ganhos de produtividade também acalmam os nervos da sociedade ao propiciar emprego, renda, lucros e arrecadação tributária. Não será possível nenhum pacto na sociedade brasileira se não baseado em retomada rápida da atividade econômica.

E para dar sustentação ao crescimento, uma quarta parte da “Carta” é a necessidade urgente de se lançar uma grande frente de investimentos em infraestrutura, que, dadas as condições fiscais, não contará com a atuação direta do setor público. O que o setor público tem a fazer nesta área é oferecer uma regulação clara e confiável e uma administração fina do emaranhado de regras que travam este tipo de empreendimento no Brasil, para poder contar com a participação decisiva do capital privado nacional e estrangeiro. A escala do mercado brasileiro, as condições geográficas e a dotação de recursos naturais são suficientes para tornar estes investimentos rentáveis e atraentes; trata-se de bem organizar as condições de operação.

Estes são os elementos centrais da nova “Carta” que Lula, o PT e Haddad estão a oferecer implicitamente à sociedade brasileira, sem rancor, sem a arrogância que às vezes aparece – indevidamente – na vitória, com o reconhecimento dos erros passados e com a responsabilidade de reconstruir o País, sempre atento à necessária distribuição dos ônus e dos bônus num País cuja marca maior ainda é a desigualdade.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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