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16 de julho de 2018
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12:39

Cutucando a globalização

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Cutucando a globalização
Cutucando a globalização
Com o advento da Indústria 4.0 e de novos equipamentos e novas técnicas, começam a ocorrer mudanças profundas na forma de produzir. (Governo do Espírito Santo/Divulgação)

Flavio Fligenspan (*)

A onda de globalização mais intensa, tanto no que se refere à produção de bens industriais e de serviços, como no que tange às operações financeiras, começou na virada dos anos 1980 para os 1990. Ela ganhou corpo rapidamente, espalhando-se pelo mundo a partir dos países desenvolvidos que tinham muito a ganhar com a queda de barreiras e o livre trânsito de bens, serviços e divisas.

Junto com este movimento e aproveitando as novas possibilidades de segmentação da produção industrial, quando tecnicamente possível, apareceram as cadeias globais de valor. Isto é, sempre que um produto pudesse ser fabricado em etapas fisicamente separáveis, desde que houvesse vantagem em termos de custo, empresas com atuação internacional trataram de implementar esta separação. Assim, partes de determinado produto eram produzidas em uma região ou país e se juntavam a outras partes produzidas em outro local até se chegar ao produto final, constituindo as cadeias globais.

Claro que tal forma de produzir só tem sentido para produtos modularizáveis, cuja produção se dá através de processos não contínuos, o que se aplica para ampla gama de bens, desde calçados e vestuário até automóveis e aviões. Evidentemente, tais mudanças na forma capitalista de fabricar só foram possíveis porque houve avanços significativos nos meios de transporte e nos meios de comunicação; do contrário, segmentar a produção em tempos de just in time seria economicamente inviável.

Utilizando os princípios da segmentação da produção, as empresas passaram a dividir as etapas fabris em diferentes regiões do mundo de acordo com a conveniência de salários mais baixos, impostos menores e subsídios maiores, sempre tendo em conta que quanto mais próximas geograficamente as diversas etapas, menos chance de problemas se criava. A despeito do avanço da globalização, diversos trabalhos sobre o comércio internacional de matérias primas e de partes e componentes industriais mostram que as relações de fornecimento ainda se dão majoritariamente intra grandes regiões do mundo, Ásia, Europa, América do Norte. Ou seja, o binômio distância-tempo ainda pesa.

O que aparentemente é mais fácil de fazer é a separação entre as etapas pré e pós produção, por um lado, e a de produção/montagem, por outro. Do ponto de vista de custo e de agregação de valor, esta última é a etapa menos nobre, a que mais facilmente é transferida para qualquer lugar do mundo em busca de vantagens como mão de obra barata. É consenso que interessa reter as outras etapas, que envolvem planejamento e desenvolvimento do produto e serviços de marketing e pós venda. Elas empregam trabalhadores mais qualificados e de salários mais altos, a inteligência do setor. Esta forma de ver a atividade industrial em tempos de globalização levou a uma crescente separação das tarefas de produção das demais nos últimos vinte anos, pelo menos.

Bem recentemente, há menos de uma década, estudiosos dos processos industriais começaram a verificar um novo fenômeno, que a separação geográfica entre concepção e produção/montagem trazia não só vantagens, mas também problemas. A experiência mostrou que ficar completamente afastado da produção fazia com que as etapas mais nobres perdessem eficácia e eficiência. Alguns ramos industriais e algumas empresas começaram a rever suas posições; não que isto significasse simplesmente voltar ao padrão anterior – imagine o quanto Trump ficaria satisfeito, dizendo que recuperou os empregos perdidos para os americanos de baixa qualificação –, mas que ajustes eram necessários.

Ainda mais recentemente, com o advento da Indústria 4.0 e de novos equipamentos e novas técnicas, começam a ocorrer mudanças profundas na forma de produzir e na forma de organizar a produção. O trabalho humano de baixa qualificação fica cada vez ainda menos importante na atividade industrial, o que pode mexer com a geografia da produção mundial. Não seria completamente estranho se daqui a dez anos os movimentos de relocalização de partes da produção ocorridos no passado recente, justamente os que moldaram as cadeias globais de valor tais como se conhecem hoje, tenham sofrido um revés. Não se pode exagerar dizendo que, num novo ambiente como este, guerras comerciais perderiam o sentido, mas não se poderá usar o argumento de que uma guerra comercial está sendo implantada para recuperar empregos perdidos pela evolução do capitalismo industrial. Os (poucos) empregos industriais remanescentes serão mantidos e/ou recuperados apenas pela capacidade de incorporar os avanços tecnológicos a um custo suficientemente baixo.

(*) Professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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