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17 de outubro de 2016
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10:00

PEC 241: legitimidade e conflito distributivo

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pec-241Por Flávio Fligenspan

Governos eleitos democraticamente e tendo disputado campanhas políticas honestas – em que se discutem seriamente os problemas do país e se propõem soluções por vezes duras – têm legitimidade para governar, exigir sacrifícios da população e mediar a distribuição dos ônus destes sacrifícios, tanto entre diferentes classes sociais, como entre diferentes momentos do tempo, por vezes assumindo os custos no presente, por vezes transferindo-os para o futuro. O “contrato social” que sai desta negociação política, sancionado pela vitória eleitoral, pode e deve ser implementado e respeitado por todos, ganhadores e perdedores. A tarefa de governar exige que se arbitrem os conflitos em relação às receitas públicas – quem paga que parcela da conta total – e em relação aos gastos – quem recebe os benefícios das políticas públicas. Cabe ainda aos governos administrar com máxima eficiência tanto o lado das receitas, como o da despesa, pois sempre há muito a ser feito nas duas esferas. Este é um modelo ideal, nunca verificado integralmente na realidade.

Tanto mais nos afastamos do modelo quanto mais começamos a romper seus princípios básicos. O segundo Governo Dilma se afastou do modelo em 2015 ao implementar uma política econômica contrária ao que defendeu na campanha de 2014. Impôs um ônus muito forte à sociedade, com a recessão proposta pelo Ministro Levy, e não teve o apoio que pensava obter nem da população, que se sentiu traída, nem mesmo da sua base no Congresso. Quando se pensa em se afastar do modelo, Temer é muito pior; sequer tem a legitimidade do debate e da vitória eleitoral e apenas com a pretensão de se apresentar como o agente que vai corrigir “os desmandos anteriores” espera obter o aval da sociedade para medidas muito duras na área fiscal. Pouco provável que tenha sucesso.

Temer apresenta à nação a sua visão sobre um quadro fiscal ruim, encoberto por meias verdades e meias mentiras, afastando partes importantes da explicação de como se chegou à situação atual. Ora encobre fatos relevantes sobre as receitas, ora sobre as despesas e espera conseguir convencer a sociedade da necessidade dos sacrifícios, especialmente das camadas mais baixas da distribuição de renda.

A lista de distorções da verdade é imensa. Em primeiro lugar, não se explica que a situação fiscal piorou rapidamente nos últimos anos porque a economia não só não cresceu, como entrou em recessão, o que derrubou as receitas públicas, gerando déficit primários – o resultado que não leva em contas os juros da dívida pública. Na volta do crescimento, o que já está programado para a partir do ano que vem, o resultado primário logo vai melhorar.

Em segundo lugar, as despesas cresceram nos últimos dez anos porque os Governos Lula e Dilma aumentaram muito o gasto com políticas e programas que atendem aos mais pobres, sempre negligenciados pelos governos anteriores. A política de recuperação do valor real do salário mínimo, por exemplo, de imensos efeitos sociais e econômicos, foi responsável por boa parte do aumento de despesas, inclusive por sua repercussão sobre os gastos da previdência social. Mas esta foi uma escolha política destes Governos, legitimada nas urnas. Nada a reclamar, pelo contrário; está lá no modelo.

Outra parte da verdade encoberta vem do lado das receitas. É de conhecimento geral que a tributação no Brasil incide proporcionalmente mais sobre as famílias de rendas médias e baixas e menos sobre as famílias de rendas altas e sobre muitas empresas beneficiadas por diversos mecanismos de abatimento tributário; sem falar nas brechas de sonegação. Ora, o resultado fiscal é feito de despesas e de receitas, portanto é possível melhorá-lo por ambos os lados. Porque não trabalhar do lado da receita, com uma redistribuição socialmente mais justa da carga tributária? Voltamos ao modelo, quando se falava em distribuir os ônus e arbitrar os conflitos.

Vale o mesmo quando se esconde que o atual déficit primário é pequeno perto da conta de juros paga pelos títulos da dívida pública aos detentores destes papeis: novamente as famílias mais ricas, as empresas capitalizadas, os fundos internacionais que aplicam recursos no Brasil e o próprio sistema financeiro nacional. Para se ter uma ideia, neste ano a conta de juros será de aproximadamente R$ 500 bilhões e o déficit primário, de R$ 150 bilhões. O Programa Bolsa Família, que atende às 14 milhões de famílias mais pobres da sociedade, cerca de um quarto da população do País, custa cerca de R$ 30 bilhões por ano. Novamente aqui temos um caso claro de arbitragem do conflito sobre a distribuição de renda a favor das camadas mais ricas.

A imensa lista de distorções da verdade poderia ser acrescida de muitos parágrafos, mas quero incluir só mais um, o que trata da Proposta de Emenda Constitucional nº 241 (PEC 241). Ao congelar em termos reais a despesa pública por 20 anos, corrigindo-a, portanto, só de acordo com a inflação, sob o pretexto de “corrigir as contas públicas e eliminar a gastança”, espreme o gasto social em inúmeros programas que beneficiam os mais pobres e restringe o conflito distributivo a apenas uma parte da sociedade. O funcionalismo público, os poderes legislativo e judiciário e a parte mais desprotegida da sociedade vão travar uma disputa desesperada para ver quem cede espaço num bolo que não vai crescer a despeito do crescimento das necessidades, visto que a população aumenta, fica mais velha e exige mais cuidados. Tudo isso demandaria mais serviços públicos e uma combinação entre mais despesas e mais eficiência.

O que o Governo Temer está fazendo com a PEC 241 é, na verdade, abrindo mão de governar. Para voltar ao modelo, Temer se esquiva de arbitrar os conflitos e de buscar a eficiência e a justiça social na obtenção das receitas e na administração das despesas. Monta uma falsa verdade sobre a situação fiscal e entrega a solução do problema para a sociedade. Que duelem pelos parcos recursos liberados pela PEC nos próximos vinte anos. Com que legitimidade Temer impõe tamanho sacrifício a alguns e libera outros? Mas, por outro lado, com que legitimidade Temer arbitraria os conflitos? E com que competência técnica buscaria a necessária eficiência na arrecadação e no gasto? São perguntas difíceis de responder. E ainda resta saber se os prejudicados vão aceitar calados os ônus da PEC e das reformas previdenciária e trabalhista que vêm a seguir.

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Flávio Fligenspan é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.


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