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6 de setembro de 2017
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10:30

O pequeno Hitler tupiniquim

Por
Sul 21
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O pequeno Hitler tupiniquim
O pequeno Hitler tupiniquim

Ernani Ssó

Li numa sentada O Um – Inquérito parcial sobre o caso Ingo Ludder, último romance do Antonio D. Cattani. Mas como nem a mim nem ao autor, pelo que conheço dele, interessa a saída mais fácil, distribuir exclamações e adjetivos, vamos com calma. No mais é torcer pra que eu diga coisa com coisa.

Cattani, professor na UFRGS, é mais conhecido, como autor e organizador, pelos livros ligados à sociologia, publicados no Bananão e Argentina, Colômbia, França, Inglaterra, Itália, México e Portugal. O mais badalado – fora da academia, entenda-se –talvez seja A riqueza desmistificada, editora Marcavisual, 2013. Acho que Ricos, podres de ricos, editora Tomo, recém-lançado, deveria ser best-seller: trata-se de uma síntese didática das pesquisas feitas nos últimos dez anos pelo Cattani sobre a acumulação de riqueza pelo pessoal que não faz outra coisa que acumular riqueza e se lixar pro resto da população, algo em torno de 99%.

Além das aulas e pesquisas, ele está metido em vários outros projetos, o que coloca a seguinte questão: onde ele arruma tempo pra escrever ficção? Ou não dorme ou tem uma equipe de elfos domésticos. Aposto na segunda opção, por mais realista.

Cattani começou em 2015 com L (editora Libretos), um romance policial intrincado, com um crime e um amor obscuros, e completamente fora das trilhas tradicionais do gênero. Preciso reler qualquer hora dessas pra ter certeza de que não fui enganado. Em 2016, ainda pela Libretos, lançou Sete dias, um folhetim que escreveu pra se divertir. Agora, em 2017, pela Bestiário, O Um.

Um é como chamam Ingo Ludder, uma espécie de Bolsonaro menos folclórico e brucutu, ou um Dória com o guarda-roupa e a seriedade de sair na imprensa do Sérgio Moro, ou um Trump sem a tagarelice errante e a cabeleira de comercial de Fanta. Apesar de ser um papagaio do pensamento da ultradireita, que gazeou as aulas de História, Ludder parece ter uns dois ou três neurônios a mais que Bolsonaro e, ao contrário do Dória, não age como um camelô mais engomadinho que o normal. Sem o espalhafato do Trump, Ludder tem algo de pastor, um magnetismo meio hitleriano. É bastante sinistro, ou muito sinistro, porque é evidente o vazio que ele é.

Ludder aparece sem um plano, meio como esses malucos que anunciam o fim do mundo pelas esquinas. Mas, diante da reação fanática das pessoas, logo grandes empresários resolvem investir nele. Assim, mesmo que ele diga detestar a política e os políticos, aceita concorrer a uma vaga de senador. Toda uma máquina de propaganda e segurança é montada em torno de Ludder.

Não é fácil falar do personagem. Não temos uma visão frontal dele. O romance é a junção de depoimentos à polícia de pessoas que estiveram envolvidas com Ludder. Quer dizer, o que sabemos é fragmentário, distorcido, com muitas lacunas. Por exemplo, há um segredo envolvendo antepassados de Ludder – talvez seja o caso do racista que esconde um avô negro ou algo assim. Essa visão, de longe e desfocada do personagem, atiça a curiosidade do leitor, mas senti falta de mais detalhes, detalhes de preferência contraditórios. De qualquer forma, dá pra se entrever Ingo Ludder e, através dele, entrever os vermes que fervilham nas entranhas do Bananão.

Outra coisa: as pessoas que fazem os depoimentos. Sabemos quem são, mesmo quando o depoimento é curto, ou incidental. Isso dá lastro ao romance. Sentirmos essas pessoas como reais, gente com quem até cruzamos algumas vezes, em contraste com a imagem distante de Ludder e empresários que ficam nas sombras, nos leva à sensação que temos diante do noticiário: o mundo real, o mundo concreto onde você e eu vivemos, é manipulado por entes incorpóreos, sem nome, sem endereço, sem um propósito claro além do poder pelo poder. Uma personagem se nega a falar de certo ponto pra frente porque sabe que topou com algo muito além de suas forças. Você não conhece esse medo, essa impotência?

Não vou falar do enredo porque isso o leitor tem de viver durante a leitura. Interessa notar que o romance nos dá alguns flagrantes do Bananão atual, com políticos que negam a política, com empresários não apenas corruptos como descarados, com uma Justiça sempre pronta a livrar a cara do pessoal da bufunfa, com marqueteiros macunaímas e gangues de desmiolados que querem resolver tudo no pau. Como se vê, Cattani encara um tema espinhoso, um tema que aparece de modo torto e impreciso na imprensa e que raramente dá as caras na literatura pátria. Bota raramente nisso. Apenas pelo tema O Um já mereceria destaque. Mas além disso Cattani dá uma boa trama, um punhado de personagens reais e o sumiço de Ludder, uma sequência hilária, porque muito provável em seu absurdo grotesco.

Dos romances do Cattani, este me parece o mais ambicioso e o melhor. Rápido, fluente, leve. Cattani começou tarde na ficção, mas começou com uma boa vantagem sobre outros iniciantes: ele conhece o mundo, conhece as pessoas. Sabe-se, sem isso, não há romance nem que a vaca tussa.

PS: É preciso falar da edição da Bestiário: simples, arejada, bonita – realmente profissional. É preciso falar também que não será fácil encontrar o livro, de modo que se deve insistir nas livrarias – pode ser que assim os livreiros descubram que existem autores que não fazem parte da manada de gringos com a pasmaceira de sempre. Quem tem pressa deve ir direto no site da editora.

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Ernani Ssó é o escritor que veio do frio: nasceu em Bom Jesus, numa tarde de neve. Em 73, entrou pro jornalismo porque queria ser escritor. Saiu em 74 pelo mesmo motivo. Humor e imaginação são seus amuletos.


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