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12 de fevereiro de 2014
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10:57

O psicológico da vizinha está preso na gaiola

Por
Sul 21
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O psicológico da vizinha está preso na gaiola
O psicológico da vizinha está preso na gaiola

Tenho lido na internet e nos jornais e ouvido em entrevistas muita gente se referindo a “meu psicológico” ou “o psicológico do fulano”. O tal psicológico parece explicar tudo, quer dizer, justificar toda mancada ou sem-vergonhice. Sei lá, me soa esquisito. Às vezes é como se falassem de um parente que anda aprontando: o psicológico deu pra beber, o psicológico deu um desfalque na firma, o psicológico passa os dias num canto, emburrado. Sempre fico com a impressão de que se trata de um baixinho, a barba por fazer, meio careca, que nas festas conta piadas inconvenientes ou fala de boca cheia na mesa. O meu psicológico, o teu psicológico, o psicológico da viúva gostosa. Uma coisa é certa: ao falar assim, é como se não se tratasse da pessoa, mas algo externo a ela. Mandei um teco na cara da minha mulher porque meu psicológico anda pior que salada de chuchu de ontem. Perdi o jogo porque minha mulher me corneou e meu psicológico também. Não passei no vestibular porque meu psicológico tremeu as perninhas. O psicológico é um encosto, uma entidade, um deus grego interferindo na tua vida. Sai, tutufum! Agora, se a gente diz ando com os nervos em pandarecos, não estou bem da cabeça, pronto, somos responsáveis por nossas mazelas.

Encomenda

Todo dia se encomenda um filme pra alguém, coisa que obviamente envolve primeiro um roteirista, que trabalha contra o relógio e com o bafo dos produtores no cangote. Mas a gente nem pensa nisso. Agora, se se encomenda um livro, é um deus nos acuda. Ao mesmo tempo, tem um monte de gente que diz que temos de profissionalizar os escritores brasileiros. Pelo visto, o grande empecilho não é o mercado, mas a quantidade de românticos recolhidos.

A nacionalidade de Deus

Há quase trinta anos, escrevi que Deus é brasileiro, mas, como Pelé, joga pros gringos. Pelé nem joga mais, mas Deus continua brasileiro e, como todos os nossos melhores craques, sua a camiseta lá fora.

Humor ou falta de

Cortázar disse, num texto de La vuelta al día en ochenta mundos, que “uma das provas do subdesenvolvimento de nossos países é a falta de naturalidade de seus escritores; a outra é a falta de humor, pois este não nasce sem naturalidade”. Eu poderia parar por aqui, mas vamos lá: como a vida é, sempre, meio velório, meio farra, se você não percebe um deles, você é uma pessoa muito limitada. E se só vê o velório e escreve como se não quisesse ofender a viúva, é bem provável que seja muito, muito chato, além de limitado.

Outra coisa: muitas grandes obras começaram de brincadeiras, como Gargantua ou Dom Quixote. Não é incomum. Como dizia Bioy Casares: “Se escrevem poucos grandes livros com o propósito de escrever uma obra-prima. Em troca, com um propósito circunstancial…”. Talvez, ao não levar muito a sério a própria obra, um escritor escreva com mais liberdade e aí o inconsciente pode se soltar.

Sejamos sérios

Claro que seriedade não é sinônimo de carranca ou de pose solene. Se fosse, José Sarney seria um escritor sério e o Cervantes um bobalhão insignificante. O tema do Cervantes, o nosso desajuste com a realidade, digamos, é dos mais sérios, dos mais trágicos, e nos acompanha desde as cavernas e nos acompanhará na colonização de Marte. No entanto ele o encarou de modo jocoso, e seu romance continua de pé, depois de mais de quatrocentos anos, porque Cervantes foi o mais fundo possível e o fez de modo divertido.

Enfim, não há assunto que não possa ser visto com humor. Começando pela morte. Se a morte pode, por que não o resto, o amor, o sexo, a corrupção, a violência, a injustiça? Só precisa talento. Mais nada. Agora, se o humor não é a sua praia, muito bem, é melhor deixar pra lá mesmo. Só não venha cantar a superioridade da carranca e da solenidade.


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