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31 de agosto de 2016
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10:30

O mau uso microfone não pode matar o jornalismo

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Sul 21
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microphone-1003561_960_720Por Eduardo Silveira de Menezes1

Com o aparecimento da pólvora, ainda no século IX, tiveram origem os primeiros artefatos capazes de lançar projéteis em direção a um alvo específico. As chamadas “armas de fogo” foram inventadas com um único objetivo: matar! Não há outra finalidade para o uso de um revólver. É completamente diferente de outros objetos que, embora possam causar a morte, não foram criados para tal fim. Quando alguém diz, por exemplo, que o carro é “uma arma”, está se referindo à possibilidade da sua utilização inadequada levar à morte. Com o uso irresponsável do microfone ocorre situação semelhante. A diferença é que o desastre provocado por um discurso que incite a violência, na mídia, pode causar danos de proporções muito maiores do que um acidente de trânsito.

Emissoras de rádio e TV são concessões públicas. O Estado concede uma licença para que os serviços de comunicação sejam prestados. Sendo assim, os comunicadores jamais devem fomentar o ódio, a intolerância ou qualquer tipo de preconceito. Em veículos de grande audiência, um comentário potencialmente capaz de incitar a população a “fazer justiça com as próprias mãos” funciona como um “gatilho”. É preciso estar consciente das consequências antes de puxá-lo. A “carta aberta” lida pelo locutor Alexandre Fetter, da rádio Atlântida, na edição da última sexta-feira (26) do programa Pretinho Básico, ilustra bem essa relação. O locutor chegou a sugerir – em alto e bom tom – que as próximas vítimas da violência, no Rio Grande do Sul, deveriam ser os jornalistas que criticam os excessos da brigada militar – “que sejam eles a sangrar e a deixar suas famílias enterradas”, disse o jornalista, visivelmente transtornado.

Curiosamente, o áudio do programa não consta mais na página oficial do Pretinho na internet. Seria uma retaliação da emissora? Não se sabe. O certo é que a mídia tem um papel preponderante na “formação da opinião pública”. Ela, indiscutivelmente, agenda os assuntos a serem debatidos pela população. Todavia, quando os próprios comunicadores não conseguem fugir ao senso comum, seus discursos funcionam de modo semelhante ao de uma arma que acaba sendo disparada de forma acidental. É importante notar que, embora o Pretinho Básico tenha uma audiência bastante heterogênea, possui grande aceitação entre os mais jovens. É justamente aí que está o maior problema. Não se deve deixar nenhuma “arma” ao alcance desse público. Quem ainda está formando um juízo a respeito de temas como a violência corre o sério risco de ser “municiado” de forma equivocada.

Com o microfone nas mãos, mas incapaz de reconhecer sua ignorância sobre os assuntos abordados, o jornalista leva sua audiência a fazer associações absurdas. A intolerância política é fruto desse processo. Talvez o funcionário da RBS não saiba, mas o artigo 6º do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros diz que todo jornalista deve “defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos”. São fundamentos inspirados na Revolução Francesa, cuja base filosófica ancora-se nas liberdades clássicas e nos direitos civis e políticos. Defender a dignidade de todo e qualquer ser humano, portanto, nada tem a ver com “ser conivente com a violência” e, muito menos, com a propagação de “ideais marxistas”.

A violência no Brasil – e, particularmente, no Rio Grande do Sul – certamente precisa ser discutida junto à sociedade civil. Cobrar providências das autoridades é legítimo. Debater os problemas de segurança pública que atingem as cidades gaúchas é positivo, pois contribui para pressionar o Governo Sartori a rever o corte de investimentos nesta área e o parcelamento do salário dos servidores. Mas isso não pode ser feito de forma impensada e precipitada. Assassinato é crime. Matar é desumano, em qualquer circunstância. Quando um grupo de pessoas espanca – ou, até mesmo, mata – um delinquente, o saldo não é de um bandido a menos, mas sim de um número ainda maior de criminosos.

Em um sistema baseado no consumo e cujo objetivo principal é o lucro, os “valores sociais” correspondem, sistematicamente, à lógica de mercado. Mata-se por um par de tênis, por um celular ou apenas por uns trocados. Mata-se motivado pela necessidade de “ter”. Mata-se com a conivência de um Estado omisso e a letargia de um poder Judiciário que nem sempre é justo. Mata-se de novo, de novo, e de novo, toda vez que se expõe uma família ao sofrimento de perder um ente querido nos telejornais. Quando, em primeiro plano, foca-se a lágrima que escorre no rosto de uma mãe que acaba de enterrar seu filho. Mata-se, ainda, a liberdade de expressão toda vez que se deseja a morte de quem pensa diferente. O primeiro passo para superar o caos na segurança pública consiste em não admitir que se mate mais. O jornalismo não pode se deixar desumanizar. Deve cumprir seu dever ético. Dignificar sua função. Não lhe é permitido, jamais, perder a esperança.

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1 Eduardo Silveira de Menezes é jornalista, mestre em Ciências da Comunicação pela Unisinos e doutorando em Linguística aplicada – com ênfase em análise do discurso pêcheuxtiana – pela UCPel. E-mail: [email protected].


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