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29 de junho de 2018
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12:06

A soja pode acabar com a economia gaúcha (e com muito mais)

Por
Sul 21
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A soja pode acabar com a economia gaúcha (e com muito mais)
A soja pode acabar com a economia gaúcha (e com muito mais)
Lavoura de soja na região de Candiota (Marco Weissheimer/Sul21)
Nos últimos anos a soja invadiu as áreas de cultivos tradicionais no Estado. (Foto: Marco Weissheimer/Sul21)

Paulo Niederle (*)

Cresci com uma lavoura de soja que chegava quase à porta da minha casa. Grande parte dos meus familiares a cultivaram e ainda a cultivam. Sou oriundo de uma geração de agricultores e filhos de agricultores cujas identidades e representações de mundo estão profundamente associadas à soja. Identidades e representações que se perpetuaram. Peça para uma criança de algumas regiões do interior gaúcho representar o meio rural em uma imagem e haverá uma grande chance de que desenhe uma lavoura de soja.

É muito difícil para mim e para todos que cresceram com esta imagem da soja como modelo de progresso aceitar a ideia de que este grão pode acabar com a economia gaúcha (talvez brasileira). Vejo isto na face dos filhos de agricultores que chegam todo semestre às minhas aulas no curso de agronomia da UFRGS. A reação da maioria deles, sensata e esperada, é de completa incredulidade. Ora, quem ousaria afirmar que a soja, que supostamente ‘sustenta a agricultura do estado’, poderia ser, na verdade, o problema e não a solução? Tento lhes explicar minhas múltiplas razões. Aqui não tenho condições de explorar cada uma delas em detalhes. Vou apenas destacar as principais.

A primeira e mais debatida no meio político tem a ver com o fato de que a soja é uma das commodities de exportação mais beneficiadas pela Lei Kandir. Em vigência desde 1996, esta lei desonerou as exportações de bens primários e semielaborados do pagamento de ICMS. Por causa dela, o RS acumula uma perda de arrecadação de quase R$ 50 bilhões. Cabe lembrar que a dívida pública do Estado chegou a R$ 67,6 bilhões no final de 2017.

Uma segunda razão é o efeito da expansão da soja em termos de especialização produtiva. Por um lado, isto aumenta a vulnerabilidade dos agricultores em face das oscilações do mercado internacional e das intempéries climáticas (todos se perguntando quando será a próxima seca). Por outro, repercute no modo como a soja substitui outros produtos de maior valor agregado, repercutindo em redução do potencial de crescimento econômico.

Na mesma extensão de área o cultivo de soja tem rendimento econômico inferior a vários produtos agrícolas. No entanto, o que se vê em toda parte são agricultores vendendo as vacas, arrancando os pomares e retirando até mesmo suas casas para plantar soja. Não impressiona, portanto, o aumento do preço dos alimentos nos supermercados, sobretudo das frutas, verduras e legumes.

A expansão da soja tem um efeito indireto, portanto, no poder de compra dos consumidores. Na medida em que os agricultores, desestimulados a plantar gêneros alimentícios básicos, se voltam para a soja, os consumidores não apenas vêem os preços dos alimentos aumentar, mas também são empurrados para uma parafernália de produtos industrializados baratos e ultraprocessados.

Aqui a discussão sobre os efeitos da sojicização vai longe. Poderíamos, por exemplo, associar a expansão da soja à crise de saúde pública decorrente do consumo destes produtos industrializados. E também poderíamos acrescentar nesta equação o fato de que a soja contribuiu decisivamente para tornar o Brasil o maior consumidor mundial de agrotóxicos (que, ademais, também se beneficia de redução de impostos).

Berço do processo de sojicização da economia gaúcha, a região noroeste do RS se destaca no que se refere ao problema dos agrotóxicos. Oriundo desta região, mas tendo migrado muito cedo, ainda hoje tenho uma memória olfativa do cheiro do veneno. O vento levava o produto da lavoura até a casa. Sabíamos que era melhor não ficar exposto. Mas ninguém dizia nada sobre colher e comer um pé de alface após a aplicação do veneno na lavoura que estava logo ao lado.

A expansão da soja também afetou outros cultivos tradicionais. Na última década a área de milho cultivada no RS foi reduzida pela metade. Os produtores de suínos, aves e leite já sentem os efeitos do problema. A especialização na produção de soja pode inviabilizar estas cadeias produtivas. Por conta disso, nos próximos anos empresas agroindustriais poderão reorientar seus investimentos para outros estados, mais próximos dos locais de produção desta matéria-prima.

Nos últimos anos a soja também invadiu as áreas de produção de arroz e carne. O pampa gaúcho, um bioma único no mundo, está ameaçado pelo monocultivo da soja. Apenas isto já seria uma razão suficiente para nos preocuparmos e regularmos o uso das terras agrícolas. Mas, se isto não bastar, preocupe-se ao menos com a origem, a qualidade e o preço da carne que você consumirá nos próximos anos.

No caso do arroz, item básico da dieta alimentar brasileira, a entrada da soja se dá em um contexto de crise da produção rizícola. Fala-se na rotação de cultivos entre soja e arroz como solução para a crise. O risco, contudo, é a substituição. E a pergunta que todos se fazem é porque as políticas públicas apóiam mais a soja do que o arroz e o feijão (que, aliás, estamos importando). Mesmo dentre as políticas para a agricultura familiar, como o PRONAF, a soja abocanha mais da metade do crédito de custeio agrícola.

Por que não apoiar outras cadeias de maior valor agregado como leite e derivados, frutas e hortaliças, queijos e vinhos? Muitos dirão que os agricultores plantam soja porque já não existe mão de obra no meio rural para outras atividades. É verdade. Mas talvez também tivéssemos que considerar a possibilidade de que já não existe mão de obra no meio rural porque se incentivou a especialização produtiva e a concentração da terra. Pergunte a um agricultor ou um trabalhador rural se ele teria intenção de sair da terra se ele tivesse condições de ali permanecer de maneira diga, com acesso a bens e serviços. Ou seja, a falta de mão de obra é a conseqüência e não a causa do problema.

Mesmo assim, provavelmente alguém vai dizer: o preço da soja está muito alto, ou seja, não existe alternativa mais rentável. O preço da soja não está alto. O que está alto é o dólar. Na verdade, o preço caiu nos mercados internacionais. Depois da explosão de 2008, repetida em 2012, o preço despencou nas bolsas de valores internacionais. Os agricultores brasileiros somente seguem recebendo um valor muito elevado porque a taxa de câmbio compensa esta queda.

No entanto, o câmbio também fez aumentar o preços dos insumos, das sementes ao óleo diesel. Se somarmos a isso o preço da terra e a remuneração do trabalho dos agricultores, não será difícil perceber que a maioria dos sojicultores opera com uma rentabilidade por área relativamente baixa (o que demanda aumento contínuo da escala). Muitos destes agricultores sabem que estarão endividados se, por exemplo, uma nova estiagem atingir o RS durante a safra. Assim como os governadores, apenas rezam para que não haja uma grande seca.

Nos pequenos municípios do interior do estado crescemos ouvindo a máxima de que ‘a cidade vai bem quando a colônia vai bem’. Também é verdade. A dinâmica econômica dos pequenos municípios é muito pautada pela produção agropecuária. Mas isto não se sustenta se a renda agropecuária estiver concentrada nas mãos de poucos e grandes produtores. A expansão da soja está expulsando as pessoas do meio rural, aumentando a concentração da terra e da renda. Os pequenos municípios não tardarão a sofrer as conseqüências deste processo.

Enfim, a expansão desenfreada da soja não apenas coloca a economia gaúcha em sérios riscos, mas também reproduz a ideia de um mundo rural sem gente. Não estamos apenas substituindo arroz, carne e leite por soja. Estamos substituindo as pessoas. Estamos acabando com a ideia do rural como um espaço de vida, de sociabilidades, de patrimônios culturais e alimentares.

Não cabe culpar os produtores de soja – embora um deles em particular, aquele que está sentado na cadeira do Ministro da Agricultura, mereça algum crédito por isso tudo. A maioria está amarrada a uma complexa rede econômica que envolve empresas, bancos, assistência técnica, comerciantes e propaganda. Não é fácil se desvencilhar desta rede e encontrar outras alternativas.

Mas cabe argüir quando e como o Estado vai criar incentivos para os produtores de alimentos, de leite, de arroz, de carne, de frutas etc.? Quando vai apoiar a pequena e a média indústria do modo como apóia as commodities agrícolas? Quando vai ter políticas de apoio à diversificação econômica, a qual sempre foi o principal esteio do desenvolvimento gaúcho? Quando vai criar alternativas para os agricultores que querem escapar dos riscos da soja?

O momento para discutir estas questões é agora. Às vésperas das eleições, será importante saber o que os candidatos pensam à respeito.

(*) Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. As opiniões emitidas nesta coluna são de responsabilidade do autor. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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