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22 de maio de 2018
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16:29

Devemos ir para casa comer? As possibilidades do abastecimento local

Por
Sul 21
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Devemos ir para casa comer? As possibilidades do abastecimento local
Devemos ir para casa comer? As possibilidades do abastecimento local

Marcio Gazolla (*)

O titulo figurativo deste texto é uma menção a um artigo em que os pesquisadores americanos Melaine Dupuis e David Goodman refletem criticamente se os alimentos locais são sustentáveis e viáveis para o abastecimento da população.

Ao longo da história os sistemas de provisão de alimentos evoluíram da escala local para global. Quando as sociedades ainda eram em sua maioria constituídas por camponeses, estes eram os responsáveis pelo abastecimento de vilas, povoados, pequenas cidades e aglomerados nascentes. Os alimentos circulavam da produção ao consumo local. Pode-se dizer que nesta época comíamos em casa.

Com o crescimento populacional das cidades, a entrada das mulheres nos mercados de trabalho e aumento da produtividade da agricultura modernizada, entraram em cena vários intermediários nas cadeias de distribuição. São exemplos disso, o surgimento das indústrias alimentares, atacados, redes de varejo, especuladores, entre outros atores. Num primeiro momento, isto foi visto com bons olhos, pois estes grandes aglomerados urbanos precisam abastecer um grande número de pessoas, de forma ágil e sem problemas de logística.

Com o passar do tempo, os problemas deste sistema alimentar concentrado e funcionando pelas cadeias longas de abastecimento começaram a surgir, dentre eles a industrialização excessiva dos alimentos, instabilidade dos preços, alimentos sem identidade e origem e com qualidades duvidosas (são exemplos recentes a adição de soda cáustica ao leite e a operação carne fraca). Além disso, estes alimentos não nutrem adequadamente as pessoas e geram enfermidades, que são chamadas de doenças crônicas não transmissíveis: obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, hipercolesterolemia, além de alergias e intolerâncias alimentares. Por fim, não esqueçamos os altos impactos sobre o meio ambiente, pois a produção de alimentos/agricultura é responsável pela geração de 70% dos gases de efeito estufa.

Este conjunto de críticas intensificou-se a partir dos anos 1990, pois tínhamos nos tornado consumidores de alimentos de “”lugar nenhum”, anônimos. Como alternativas a estes problemas, surgiram várias experiências e, em alguns casos, são até desenhadas políticas públicas por algumas regiões e governos. Uma das iniciativas é a tentativa de (re)conectar os consumidores com a produção local e os agricultores familiares em cadeias curtas de alimentos.

A ideia básica é que a produção circule por canais de abastecimento e mercados locais, no intuito que as necessidades dos consumidores sejam supridas em sua origem, sem os alimentos percorrerem longas distâncias. Nestes mercados, voltaríamos a comer “em casa”, pois produção e consumo seriam re(territorializados) e re(conectaria) consumidores com agricultores (conforme mostra a Figura 1 no caso do leite fresco na Itália).

Figura 1 – Itália: reconexão em cadeias curtas entre agricultores e consumidores através de distribuidores automáticos de leite fresco colocados em praças públicas.

Mas, quais as vantagens de produzir e consumir alimentos locais? Uma primeira seria que os consumidores conseguem saber a origem dos alimentos, em função de se poder “rastreá-los socialmente”, pois possuem relações de proximidade social com os agricultores ou mesmo através de rótulos, símbolos, certificações que os produtos possuem, caso circulem em regiões mais distantes. Uma segunda consideração importante é que os alimentos que circulam por cadeias curtas, são alimentos mais saudáveis e sustentáveis, no sentido que provêm de experiências da agricultura integrada, orgânica, artesanal, agroecológica, com especificidades qualitativas, sociais ou territoriais.

Também são importantes as questões econômicas e de valor agregado nestes mercados. Do lado dos agricultores as cadeias curtas geram maiores ingressos econômicos, pois os mesmos conseguem ganhar mais por seus alimentos, ficando com o valor agregado para suas famílias. Já os consumidores, economizam ao adquirir estes alimentos, devido possuírem preços menores que nos supermercados, por exemplo. Por fim, as cadeias curtas também ajudam a baixar custos econômicos, logísticos e ambientais de transporte dos alimentos a longas distâncias, além de reduzir desperdícios alimentares que são elevados nas cadeias longas (estima-se que em torno de um terço da alimentação mundial é perdida de diversas formas e nos diferentes elos das cadeias de distribuição).

Em outros países há estudos evidenciando que boa parte da circulação dos alimentos funciona como cadeias curtas. Por exemplo, na União Europeia, pesquisadas mostram que 32,5% dos alimentos circulam localmente e são produtos com qualidades específicas (orgânicos, indicações geográficas, denominações de origem, artesanais). Na Itália estima-se que 57 mil propriedades comercializam alimentos orgânicos localmente, principalmente vinhos, olerícolas e frutas, que correspondem a 75% da chamada venda direta ou alimentos “km zero” como são também denominados. Os dados italianos mostram que estes mercados crescem em torno de 4% ao ano. Então, boa parte dos europeus também consegue se alimentar em casa.

E no Brasil, qual o tamanho destes mercados? Quais experiências poderíamos chamar de cadeias curtas? No Brasil, não se tem estatísticas oficiais concretas sobre estes mercados, bem como os estudos e pesquisas acadêmicos sobre o tema ainda são pontuais e localizados. As experiências que se aproximam da noção de cadeias curtas são as feiras (livres, do produtor, agroecológicas e mistas). Os alimentos das agroindústrias familiares também possuem essa lógica de distribuição.

Além disso, os programas de compras da agricultura familiar (PAA e PNAE), embora não tenham sido criados com esse objetivo, cumprem o papel de cadeias curtas, tendo o Estado como ‘construtor’ destes mercados. Ademais, há exemplos ligados às atividades de turismo rural/ecológico, rotas gastronômicas, festas, eventos e feiras multisetoriais. Ou seja, não sabemos qual o tamanho e a dinâmica destes mercados, mas sabemos que eles existem e precisamos fortalecê-los!

E por que estas experiências são quase invisíveis no Brasil? Por um lado, boa parte dos consumidores ainda compra em supermercados e outros pontos de varejo convencional, importando-se somente com quantidades e preços dos alimentos, não colocando em suas escolhas outras valorações sociais (qualidade, sustentabilidade, saudabilidade). As indústrias alimentares possuem muito poder econômico, influências políticas e estratégias de marketing que induzem uma parte dos consumidores a adquirirem alimentos processados. Além disso, o Estado não tem agido eficientemente para apoiar com políticas públicas estas iniciativas para que elas pudessem expandir-se e abastecer um maior número de consumidores, os quais talvez também desejam ‘voltar para casa’ para se alimentar.

(*) Professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) – Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR). Pesquisador associado ao GEPAD. As opiniões emitidas nesta coluna são de responsabilidade individual do autor. E-mail: [email protected]


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