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4 de maio de 2021
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10:30

Da perda ao luto ou do jardim de Iara

Por
Sul 21
[email protected]
Foto: Gilson Mafacioli.

Volnei Antonio Dassoler (*)

De todo o amor que eu tenho
Metade foi tu que me deu
Salvando minh’alma da vida
Sorrindo e fazendo o meu eu

Se queres partir, ir embora
Me olha da onde estiver
Que eu vou te mostrar que eu tô pronta
Me colha madura do pé

……………..

Me mostre um caminho agora
Um jeito de estar sem você
O apego não quer ir embora
Diacho, ele tem que querer

Ó meu pai do céu, limpe tudo aí
Vai chegar a rainha
Precisando dormir
Quando ela chegar
Tu me faça um favor
Dê um banto a ela, que ela me benze aonde eu for [1]

Existem temas cuja abordagem resulta espacialmente delicada. O do luto é um deles. Escrever ou ler um texto sob o efeito da perda de alguém por quem sentimos profunda estima e amor nos faz prestar ainda mais atenção à escolha do vocabulário ao deixar-nos mais sensíveis à flexibilização dos usos e arranjos conceituais, sabedores da afetação que as palavras exercem sobre o corpo e a alma de cada um de nós. Ainda assim, cabe mais uma tentativa de falar sobre esta realidade, narrativa forçadamente necessária frente à maior tragédia da história recente de nosso país, que, pela ocorrência generalizada de mortes, não nos permite falar de normalidade no fluxo da vida e, por que não dizer, da morte, contrapondo-se eticamente, dessa forma, à ficção míope daqueles que negam e minimizam a gravidade da atual conjuntura. Neste cenário pandêmico, a precarização dos rituais de despedida que permitem modos de cuidado compartilhados diante da experiência da perda contribui para o agravamento do processo de luto.

Morrer é o destino da vida humana; acontecimento universal e, ao mesmo tempo, experiência radicalmente singular. Nossa compreensão sobre a morte vai se construindo aos poucos. Primeiramente, nos vemos expectadores das partidas daqueles que nos antecipam nesse destino. Testemunhos desta travessia, vamos alcançando a consciência da própria finitude e aceitamos – com mais ou menos drama – que um dia seremos os protagonistas dessa mesma viagem. Aquilo que segue a este acontecimento que acompanha o morrer, a cultura convencionou chamar de luto, nomeação do trabalho psíquico de elaboração daquele que sofre a perda, um trabalho entremeado pelo conforto, consolo e mobilização solidária. A vida de cada pessoa é, em boa parte, a história dos efeitos dos encontros com as alteridades – na qualidade de presenças e ausências – que cruzam seu caminho nas circunstâncias cotidianas e inesperadas. Há na constituição do Eu, a presença de um tanto de outros. É por isso que, ao invés de tomar o Eu, instância mediadora das relações com o mundo e com o semelhante, como unidade suposta e equivalente a uma identidade fixa, é necessário pensá-lo mais próximo do que seria uma representação caleidoscópica formada por traços de diferentes origens e fontes. É por isso que, quando perdemos alguém com quem nutrimos profundos laços de amor, temos a viva sensação de que algo de nós se vai junto com esse ser. Paradoxalmente, nesse mesmo ato, um pouco do outro fica em nós. Esta nuance da condição humana é traduzida na sensibilidade poética de Gonzaguinha na canção “Caminhos do coração”: “Toda pessoa sempre é as marcas das lições diárias de outras tantas pessoas. E é tão bonito quando a gente entende que a gente é tanta gente onde quer que a gente vá”.

Freud, em seu clássico texto “Luto e Melancolia”, qualifica o luto como um trabalho psíquico de cicatrização provocado por uma ferida decorrente de uma perda que nos abate e nos afasta do interesse pelas coisas do mundo em decorrência do sentimento de desamparo que produz em nós e da irrefutável prova da realidade do desaparecimento de quem amamos. Na ânsia pelo reencontro impossível, a dor se mostra incontornável, recusando qualquer propósito de atribuição de sentido, visto que a morte física não é assimilada pela dimensão psíquica no mesmo registro de temporalidade. Os dias se sucedem, a vida se arrasta, e tudo parece monotonamente igual. Aqui, os rituais públicos de despedida assumem estrategicamente a função social e individual de dar suporte ao processo de elaboração da perda ao abrirem espaços às homenagens que nos auxiliam a enfrentar a transitoriedade da vida.

Foto: Gilson Mafacioli.

Afinal, o que perdemos de nós quando perdemos alguém importante? O quanto podemos curar dessa dor, buraco no real? Em que tempo isso acontecerá? Do pouco que sabemos, a necessidade de tempo é uma das certezas. A outra aposta – e já não é pouca coisa – é que, diante desse desaparecimento, a colocação em cena de palavras, lembranças, músicas, abraços e companhia humana ganha força criativa ao reunir fios isolados e os transformar em potentes amarras que sustentam a ponte pênsil que se estende sobre o tanto de vazio que ainda resta.

Há no estado de luto algo a mais do que a conhecida dinâmica de desinvestimento e reinvestimento pulsional. É preciso reconhecer que há em andamento um processo subjetivo que diz respeito à transformação do próprio Eu, espécie de transição em que se projeta a vida possível mesmo diante da realidade dolorosamente verdadeira de deixar de contar com a presença física daquele que partiu. De certa forma, isso quer dizer de que há algo de incurável no próprio luto, algo que tem a ver com um resto sem substituto, motor da saudade e da memória eternizada dos que se foram.

Assim é que, tempos depois, em algum momento, instante súbito, percebemos, lá fora, ao olharmos pela janela, que as frutas da estação mudaram, são outras e parecem saborosas. O mesmo aconteceu com o jardim de Iara, refúgio de vida na pandemia, cujas cores e flores renovam o apelo à vida, compondo memória numa mistura de fantasia e realidade. Assim, quase sem querer, uma centelha se desprende do corpo, partícula-faísca para o desejar, verbo intransitivo. É a vida nos querendo de volta.

Texto em homenagem a todas as pessoas cujas vidas foram abreviadas pela Covid-19 em nosso país, em especial a Iara Lygia Mafacioli, que fez do seu jardim um lugar de vida para os tempos de pandemia.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Doutor em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), [email protected]

[1] Trecho da música “Dona Cila”, composta por Maria Gadú em homenagem à sua avó.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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