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17 de novembro de 2020
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09:50

Seu paciente favorito ou a persistência da linguagem

Por
Sul 21
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Seu paciente favorito ou a persistência da linguagem
Seu paciente favorito ou a persistência da linguagem

Robson de Freitas Pereira (*)

“Car entre deux sujets, il n´y a que la parole ou la mort”    

Moustapha Safouan [1]

Philipe, psicanalista, terminara sua conferência num conhecido hospital de Paris. Quando todos se retiravam, percebeu que um homem, depois de haver escutado atentamente nas primeiras filas do anfiteatro, o esperava. Apresentou-se formalmente; estava com mais de 75 anos, fora médico daquele mesmo hospital, tinha sido diagnosticado com um câncer e queria iniciar uma análise. Apesar da surpresa, Philipe não recuou e, semanalmente, passou a receber Georges em seu consultório. No início, o psicanalista se perguntava: qual a vantagem? Qual vantagem teria este homem idoso, doente em fazer uma psicanálise? Esta aventura arriscada e incerta?

Reprodução

Georges tinha uma demanda clara: durante toda sua vida nunca soubera expressar seus afetos. Nem tristeza, nem alegria, nem medo. Isto lhe causou problemas. Um casamento caracterizado como companheirismo sem amor. Filhos cujo nascimento o deixaram indiferente. Até mesmo duas amantes que o escolheram e que ele tratou do mesmo jeito que a esposa. Mas a dureza afetiva estava sempre presente trazendo infelicidade, estimulando agressividade e violência nos que estavam próximos, dificultando sua vida. Apesar disto, foi um médico atento, “pai precavido”, filho cuidadoso de uma mãe onipotente a quem cuidou e obedeceu. Sempre se esforçou para desempenhar corretamente seu papel.

Georges nunca faltou as sessões, mesmo quando a quimioterapia que tentava combater seu câncer intestinal o fragilizava e dificultava sua mobilidade. Sempre pontual, descritivo e formal: nunca se sentava antes de seu analista. Presente, polido, falante em sua busca por sentir algo, enfim. Parecia que apostava mais naquele diálogo analítico que o próprio Philipe. Um dia, porém, Georges começou a relatar uma conversa com a filha mais velha. Ela lhe disse que apesar de sua frieza ela sabia que ele a amava e, o considerava um excelente pai. No decorrer deste relato, o rosto de Georges começou a se modificar e este homem entrou num choro compulsivo. Derramou suas lágrimas copiosamente durante um tempo. Depois parou, se acalmou. E isto nunca mais se repetiu. Com o passar do tempo e o avanço da doença, suas vindas foram rareando até que um dia Philipe recebeu o telefonema de uma das filhas. Georges havia falecido. E ela queria agradecer calorosamente ao analista porque aquela experiência havia sido muito importante na vida de seu pai e ele havia partido com serenidade. A partir daí, nunca mais Philipe precisou se perguntar “qual a vantagem?”.

O trecho acima é um dos relatos contidos no livro “Seu paciente favorito”, de Violaine de Montclos [2]. Narrativas curtas, de dezessete psicanalistas, de diferentes orientações que se dispuseram a contar sobre uma experiência com analisantes que marcaram sua trajetória profissional e pessoal. Histórias que não se propõem a constituir um ensaio conceitual, ou mesmo relato clínico. A autora, jornalista de profissão, conseguiu evitar esta armadilha que poderia levar a um texto pernóstico ou mesmo piegas.

Com profundidade e leveza – este elemento que Italo Calvino considerou como fundamental em suas “Seis propostas para o próximo milênio”, realizou o feito de através de relatos singulares, contribuir para a psicanálise e a cultura.

Nestes tempos, onde passamos dos oito meses sob os efeitos de uma pandemia e de crises de enorme magnitude, muitas vezes somos assolados pelo medo e a angústia. Duvidamos de que nossa experiência cotidiana, cheia de detalhes aparentemente inúteis possa servir para nos ajudar a enfrentar as pestes pelas quais somos assolados. Afinal, um dos efeitos pestilentos é enfraquecer o valor das palavras e superestimar os discursos de certeza e intolerância. Preenchendo nossa vida de clichês.

Curiosamente, mas não por acaso, verificamos nestes tempos eleitorais que sustentar valores como solidariedade, justiça e delicadeza aumentaram seu espaço na sociedade. Até pouco tempo, parecia hegemônico um discurso que não tolerava dúvida ou diferenças e tentava naturalizar o preconceito, a misoginia e uma violência. Hoje, podemos constatar que a prática de uma ética tem efeitos. Quanto mais próximo da intimidade e do verdadeiro, mais possibilidades teremos de seguir na abertura das fissuras e no trabalho de desfazer a fantasia totalitária. Democracia requer um trabalho persistente; pois ainda está por ser realizada. Como o inconsciente, cujo reconhecimento implica reescrever a história, sem negar o passado ou recusar o luto pelas perdas sofridas. Reconhecer os limites e, por aí, realizar a série de fatores que nos determinam sem que tenhamos consciência (o eu não é senhor em sua própria casa), possibilita que sejamos mais responsáveis por nossos atos e possamos contar com os outros sem o temor de suas pequenas diferenças.

Notas

[1] “Pois entre dois sujeitos, só há a palavra ou a morte” – Moustapha Safouan: “La parole ou la mort – essai sur la division di sujet”, Seuil, Paris, 2010. Nossa pequena homenagem a este grande psicanalista falecido este mês aos 99 anos.

[2] Violaine de Montclos. “Seu paciente favorito- 17 histórias extraordinárias de psicanalistas”. Ed. Perspectiva. SP, 2020.

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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