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6 de outubro de 2020
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10:32

De cadências

Por
Sul 21
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De cadências
De cadências
Cena de “Aos olhos de Ernesto” (Divulgação)

Marcia H de M Ribeiro (*)

As palavras em cartas se alimentam do tempo de esperas. (Ernesto)

O vento a atravessar as frestas das janelas assobia anunciando a persistência do inverno na primavera. O dia outra vez amanhece chuvoso cinzento. As notícias no jornal tampouco tem outra cor. Nesse espírito fui assistir “Aos olhos de Ernesto”, filme dirigido por Ana Luíza Azevedo, que também divide autoria do roteiro com Jorge Furtado, numa produção da Casa de Cinema de Porto Alegre. Foi um belo encontro, resultado de um filme que emociona ao abordar com toques de poesia e tiradas de humor – o que dito seriamente seria implacável – questões complexas sobre o envelhecimento e a morte. Tal como em um conto, cada elemento nesse filme tem uma função relevante para o andamento da história. Precisaria de outras tantas linhas para falar deles, pois em se tratando de “aos olhos de Ernesto” também as chaves, os livros, os discos, os silêncios, as sombras e a luz são importantes. Nada está lá por acaso.

Ernesto, velho fotógrafo uruguaio, quase cego, vive verdadeira experiência no encontro com a jovem Bia, uma cuidadora de cães, em desamparo. Traço que ele reconhece, por identificação, e que vai funcionar como elemento de liga entre os dois, seguido do pedido que ela leia em voz alta a carta enviada por Lucía, amiga de juventude em Montevideo. E assim uma história começa.

Além de Bia e Lucía, conhecemos Cristina, outra personagem feminina importante. As três são interlocutoras de Ernesto a iluminar os efeitos da interpretação dos semelhantes sobre nós. Cada uma delas é também representante de uma temporalidade. Enquanto Bia descobre e Lucía foca em Ernesto as cadências, Cristina mira as decadências do corpo.

Cristina é a diarista contratada pelo filho de Ernesto, que mora noutra cidade para onde quer levá-lo. Ela o representa não só nos cuidados diários, também por querê-lo protegido de perigos que ela antecipa, ainda que ao custo de prendê-lo numa existência sem graça. Ela se sente responsável, o infantiliza, o espera sossegado em casa, resignado à cegueira. Ele bate a porta, luta por sua dignidade. Repudia a tragédia antecipada em seu discurso. Grita o sujeito que o habita, o inconsciente que não envelhece:

– Eu não vejo bem mas ainda sei o que quero.

Bia segue outra direção, testemunha e compartilha a experiência que atiça a chama do desejo de vida em Ernesto. É interlocutora das cartas que escreve para ele e que acabam por ser também parte dela. Ele lhe apresenta a velhice como o tempo de cadências outras. Diferente dos ritmos a que Bia está acostumada pela juventude que não reconhece finitudes, e pela imediaticidade da comunicação por telefone e aplicativos. Não há nada que ele recuse experimentar. Escolhe o tempo da espera da resposta escrita por Lucía. Na cadência que inclui a pausa, o silêncio, o tempo do outro antes de retomar a palavra.

Lucía é passado e promessa.

Bia e Lucía são para Ernesto um sopro de vida antes das cinzas.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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