Colunas>Coluna APPOA
|
12 de maio de 2020
|
10:30

A peste e as pequenezas

Por
Sul 21
[email protected]
<em>A peste</em> e as pequenezas
A peste e as pequenezas

Lucia Serrano Pereira (*)

Sim, relendo A peste, de Camus. Logo que começamos a lidar com a estranheza de todas as mudanças, busquei o livro que devia estar em algum lugar na Babel que se instalou na biblioteca. De antes, claro. Tinha certeza dele, lembrava bem do exemplar que encontrei num sebo em uma viagem, com uma capa década de 50, e que tinha rendido uma coluna aqui mesmo no Sul 21, alguns anos atrás. Quantos? 2015, já muito. Tempo em que o livro nos permitia várias relações com as questões traumáticas, o laço social, os totalitarismos aqui e ali esboçados, me interessava dialogar com o contexto de sua escrita e com algumas ideias fortes que ele trazia.

Foto: Élida Tessler – “Você me dá sua palavra?”

Albert Camus publicou A peste em 1947, recém fim da II Guerra, ele com 33 anos. Jovem que atravessou a guerra como militante da Resistência frente à Ocupação, a peste nazista, como ele aponta. Mas também gostaria que seu texto e as relações estivessem abertas às leituras e ângulos outros que perpassavam seu tecido. Camus, dez anos depois, recebe o Nobel com quarenta e poucos anos, escritor, jornalista, dramaturgo. Morre precocemente em um acidente de carro, em 1960.

Mas, de tudo isso, o contraste absurdo. Ler A peste há cinco anos, as relações possíveis, as metáforas e alegorias, o debate em torno das ideias, o diálogo com a catástrofe da guerra, o gosto por sua literatura.

Ler A peste hoje? O encontro surpreendente com a angústia. Não, não é uma narrativa à distância. Mudou o lugar desde onde nos encontramos. Um real surpreendente irrompeu. Quando se altera totalmente a cena do mundo, se reencontrar, se tranquilizar minimamente para não ficar aplastado e paralisado requer todo um trâmite subjetivo, a tentativa muito parcial por vezes de costurar esta angústia que simplesmente transbordou e que precisa ser cincunscrita para que possamos respirar, responder como sujeitos, reencontrar laço e confiança de que podemos atravessar os perigos.

Camus compõe uma escrita que nos coloca frente a passagem das pestes no mundo incluindo outros tempos, mesmo sem fazer a referência direta. Transitamos através da narrativa e dos personagens com a vertigem que dá quando se aborda a coisa muito direto; com a sensação de exílio que se estabelece frente ao mundo; com os anseios de um “querer voltar” ao mundo de antes, de há tão pouco atrás, assim como com o ímpeto de acelerar o tempo para adiante na tentativa de reencontrar o (mesmo) mundo lá adiante. Com que intensidade encontramos o que diz deles e ao mesmo tempo de nós com a incerteza do “quando” e do “como”. Entra em cena nos bairros de Oran, em suas ruelas e na intimidade das casas o “sofrimento de todos os prisioneiros”, as mortes e os lutos, o silêncio.

E a homogeneização como tendência que ameaça com o pior: a banalização da dor e das violências: a engrenagem da peste que pode amortecer os vivos e as singularidades.

Já se compreendeu que isso consistia em renunciarem ao que tinham de mais pessoal.”

Nos primeiros tempos da peste as pessoas se surpreendiam com a quantidade de pequenas coisas que importavam, que tinham lugar para si mesmas. Pequenezas diferentes para cada um, e que não tinham a menor existência para os outros. Mas que conjugavam uma porção de coisas invisíveis que compunham a vida pessoal. Na sequência, com o passar do tempo, a peste vai adentrando mais e mais, ganhando duração na cidade. E assim vai tomando espaço, aportando esse efeito estranho onde agora os habitantes de Oran “só se interessavam por aquilo que interessava aos outros, já não tinham senão ideias gerais e seu próprio amor assumira para eles a forma mais abstrata”.

Dura nota do narrador. É a indicação do perigo não de fora, mas do mortífero que pode avançar como que vindo de dentro.

Não é o que está no centro da narrativa ( se é que se deveria destacar algum). Se tivesse, daria para dizer que o crucial está mais do lado da posição que se pode tomar frente a peste em Oran, em seu sentido amplo, a posição frente a si e à cidade. Posição ética, solidária, nem heróica nem romântica, que Camus indica em torno do jovem Rambert, o jornalista que é pego de surpresa pelo fechamento da cidade, ele que argumenta que nem era dali e que além do mais tinha um amor para encontrar lá fora, por isso precisava urgentemente partir. Tenta de tudo para sair da cidade, salvo conduto, influências, contrabando, suborno, e assim vai seguindo e procurando. Mas se cria um tempo onde a experiência começa a girar com tudo o que vê, testemunha, partilha, compõe. E quando se abre uma brecha para a fuga desesperada, acontece. Rambert decide ficar. “Pensei sempre que era estranho a essa cidade e que nada tinha a ver com vocês. Mas agora que vi o que vi, sei que sou daqui, quer queira, quer não. A história diz respeito a todos nós”. Esse foi o ponto que me tomou naquela primeira leitura/escrita e que sempre me toca. Profunda ligação entre o lugar próprio, o tempo que se habita e, fundamentalmente, com o outro.

Na leitura do agora me saltou o ponto das pequenezas. Claro, mesmo nesse território tem diferença. Quantas coisas vão ser deslocadas quando algo maior acontece e nos desorienta porque de repente nos damos conta das suas irrelevâncias, desimportâncias. Precisamos dar lugar a outras questões, precisamos do espaço, e ao mesmo tempo pode ser de grande leveza jogar fora uns lastros parasitas. Mudança no valor das coisas.

Mas penso mesmo é nas pequenezas de outra ordem, outros traços mínimos. “Renunciarem ao que tinha de mais pessoal”, ecoa da leitura. Pelo que disso vem na experiência hoje, a própria e também a que escuto na clínica. O trabalho de composição desta vida de agora, o invisível e valioso movimento de não se perder do que nos concerne como sujeitos e que implica sustentar espaço de singularidade, de partícula do desejo. Também nada de heroico (como tarefa a realizar) nem romântico no sentido de alguma idealização dos nossos objetos amorosos ou de apegos.

É de outra natureza. Se trata de algo mais simples na operação, mas que também comporta um risco. Importa não se deixar estar na mira dos caminhos que mesmo sem querer vão nos tomando, ou seduzindo, ou desanimando com os contínuos de qualquer coisa. Pois dali, meio cantos de sereia, ficam os chamados que podem “nos querer” como objetos. Chamados por vezes bem argumentados e norteadores. Fazer, produzir, limpar, “encontrar” todo mundo, conexão total, corpo bem preparado, animação ou perigo permanente, e tantos outros. Sabemos, o que vem em nome do excesso de continuidade não dá respiro, justo esses que precisamos para que possamos trazer junto nossa quantidade de pequenas coisas que contam, que também nos ligam aos outros, que fazem as diferenças, essas que animam a curiosidade, o interesse, o gosto, a graça e tantos outros movimentos. Poder se desmarcar de uma chuva de demandas que, se não sobra espaço, paralisa. Penso na pulsação, nas alternâncias, nos contrastes, nos intervalos que permitem os reenlaces. É preciso tempos para algumas passagens. Que podem ser pequenas, mas que são as nossas, e que inspiram e animam os caminhos por abrir. Também para estar com o outro.

Grata companhia da imagem da querida amiga Élida Tessler, que me diz que as pequenezas são grandezas…

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora