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7 de abril de 2020
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10:12

Ideias/Fragmentos para depois do fim do mundo

Por
Sul 21
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Ideias/Fragmentos para depois do fim do mundo
Ideias/Fragmentos para depois do fim do mundo
Ruas do centro de Porto Alegre esvaziadas devido ao coronavírus. Foto: Luiza Castro/Sul21

Robson de Freitas Pereira (*)

“Language is a vírus
Laurie Anderson/Wiliam Burroughs

Um agradecimento pela origem do título-paráfrase a Ailton Krenak e seu “Ideias para adiar o fim do mundo”. Afinal, assim como ele e vários antes dele nos ensinaram, as nações indígenas deste continente vem sendo extintas há 500 anos, mas ainda estão/estamos aqui. Cada um de nós carrega um “DNA” cultural e biológico desta herança, independente de nossa vontade ou preferência. Os continentes se povoaram pelas migrações e as nações modernas devem sua atualidade aos imigrantes.

Um fragmento de memória: há muito tempo fui visitar minha avó que morava em Santos, litoral de São Paulo. Ela havia vindo do Pará com meu avô paterno, convencidos por uma filha – dos onze filhos, duas eram mulheres, de que deviam estar mais próximos. Outros filhos mais velhos já haviam emigrado para o sudeste, estabelecendo-se em Santos e no Rio de Janeiro (onde meu pai aportou trazido por seu irmão mais velho. Mas esta é outra história, ou outro ramo da minha história). Para não alongar muito, nesta visita meu avô já havia falecido e qual não foi minha surpresa quando minha avó Francisca (carinhosamente apelidada de Dona Chiquinha) apontou para a parede da sala, mostrando uma foto emoldurada dela e de meu avô jovens. Meu avô Lourenço tinha a cara de meus amigos peruanos, que eu conhecera na faculdade em Porto Alegre! Como era possível? Hoje, posso pensar com certa naturalidade que o rio Amazonas é a grande estrada que atravessa desde os Andes até o oceano Atlântico e, não por acaso, meu avô tenha sido “marítimo” pilotando rebocadores que conduziam os navios em segurança da foz até o porto em Belém e vice-versa.

Este fragmento de lembrança familiar ajuda a reconhecer que somos efeito destas travessias e cruzamentos que outros fizeram antes de nós. E este reconhecimento fica em evidencia em momentos históricos como os que vivemos hoje. Assolados pela pandemia nosso espaço e tempo se transforma.

Explico: a quarentena, com a perda de mobilidade urbana, com o fechamento ou a restrição das fronteiras nacionais e internacionais mostra que não só temos dificuldade de ir na padaria da esquina, mas igualmente viajar para o interior do Estado ficou difícil e, mais ainda tomar um avião para outro país. Houve uma restrição na autonomia e na mobilidade de cada um e de todos nós. Em parte, salva-nos do isolamento a tecnologia virtual e internet. Porém, de maneira geral, o movimento migratório que caracterizou o início deste século XXI e toda a sorte de controvérsias, sofreu uma parada.

Neste sentido, quando percebemos a perda de algo é que nos damos conta de sua dimensão. Resta saber como isto será retomado depois que as restrições não forem mais tão severas. Sabemos que nada será como antes. Não vai haver o decreto de que um dia qualquer num futuro mais ou menos próximo, todos voltem às ruas imediatamente e ao mesmo tempo. O que estamos passando não pode ser recalcado, varrido para baixo de um gigantesco tapete imaginário. Um de nossos aprendizados, renovado a cada dia; a sujeira escondida (não varrida) retorna com força para o bem ou para o mal. Exemplos: passados alguns anos da última pandemia (que durou de junho de 2009 até agosto de 2010) as pessoas começaram não comparecer nas vacinações e, ainda, os discursos anti-vacinas começaram a crescer. No campo político, qualquer semelhança com os pedidos pela volta de um governo autoritário não são mera coincidência. Como se voltar a um tempo totalitário passado, idealizado, pudesse dar alguma garantia de apaziguar a angústia.

Lembrando Freud, hoje temos as três grandes fontes do mal-estar na cultura evidenciadas simultaneamente. O corpo, fragilizado e ameaçado por um vírus que pode ser letal; as forças da natureza que além das catástrofes naturais, com as constantes agressões e interações com os animais nos trazem este novo organismo vivo e ameaçador e, por último, nossa relação com os outros (semelhantes) que frente a esta realidade nova precisa se reajustar (para dizer o mínimo).

Pois bem, estamos vivenciando um momento singular em nossa história onde crenças (não falo das religiosas), mas aquelas que se sustentam sob a égide de discursos laicos ficaram abaladas. Rompeu-se uma lógica dos discursos que nos sustentavam, sejam da ciência médica ou econômico/social. Vivemos um tempo parecido com o final do sec. XIX quando Freud descobriu o inconsciente e inventou a psicanálise. As histéricas demonstravam com seus sintomas os limites do saber médico da época. Foi preciso uma escuta e uma nomeação destes novos movimentos e paralisias do corpo. Aconteceu o nascimento de um novo discurso, no nosso caso, o discurso do psicanalista que colocou o objeto de desejo como agente desta lógica que coloca em movimento nossas relações com o mundo e com os outros, a partir de uma falta fundamental.

Temos novamente a oportunidade de reconhecer os limites dos discursos que nos sustentavam e a chance de reinventar, a partir de certos fundamentos de nossa sociabilidade; leia-se nossa capacidade de amar o outro, ter solidariedade na reconstrução do dia depois de amanhã, do tempo depois do fim do mundo. Porque faz pouco tempo, algumas semanas, que o mundo antigo terminou e temos que ter coragem e também contar com os outros para enfrentar o novo amanhã, este que está se construindo desde ontem, onde podemos ficar demandando que a velha ordem se restabeleça para espantar o medo do caos, ou reconhecer o medo, a angústia como motores da possibilidade de fazer alguma coisa nova na relação com o mundo e com os outros. Atravessando as fantasias de castigo ou de tragédia, lembrando que a mobilidade, restrita hoje, não pode ser eliminada de nosso “corpo social”. As coisas programadas ontem não serão mais as mesmas. Language is a vírus, dizia o poeta. Então além do corona vírus existem outras virulências que podem nos ameaçar mentalmente.

Para fazer frente as dificuldades (inúmeras) da atualidade, as palavras continuam sendo o sustento de nosso desejo. Pois, com graus variados de engenho e ênfase, espíritos argutos apontam há séculos que, mais do que refletir o real, a linguagem lhe dá forma e corpo. Reconhecer que perdemos o mundo de ontem, requer uma elaboração, um luto. Contamos com palavras compartilhadas para sustentar um desejo e sustentar o mundo que está se construindo mais próximo de um novo começo.

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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