Colunas>Coluna APPOA
|
31 de março de 2020
|
10:30

Tempo, tempo, tempo….

Por
Sul 21
[email protected]
Tempo, tempo, tempo….
Tempo, tempo, tempo….
Cartaz de medida de prevenção sobre Corona Vírus na faculdade de arquitetura da UFRGS. Foto: Luiza Castro/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Em 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a vigência da pandemia do novo coronavírus no mundo. Trata-se de um episódio sem precedentes na história recente da humanidade. A confirmação da transmissão sustentada em nosso país suscitou um fluxo ininterrupto de notícias sobre as medidas entendidas como necessárias para o enfrentamento da doença produzida pelo vírus. Apesar da incredulidade de alguns, reconhecia-se autoridade e legitimidade nas ações propostas pelo Estado, em sintonia com as orientações compartilhadas mundialmente.

Em qualquer gestão de crise, como a que vivemos, as decisões precisam ser tomadas com rapidez para responder às urgências e alargar o tempo para novas análises e intervenções. Em nosso país, medidas restritivas da liberdade de ir e vir, na forma de isolamento social, conformaram a estratégia mais adequada para conter o avanço do vírus. O medo e a incerteza sobre a extensão do fenômeno abalaram nossa sensação de segurança desestabilizando a própria relação com a realidade. Este cenário forçou a adoção de condutas de salvaguarda de si e dos outros, semelhantes que compartilham com cada um de nós a mesma necessidade de amparo. Na contramão desta mobilização solidária, este planejamento é atacado pela figura de autoridade que exerce indignamente a função presidencial do Brasil. Suas palavras desprezaram e desqualificaram o conjunto de esforços e ações de saúde pública implementadas a partir de evidências científicas e que visam à redução do contágio e à proteção da vida da população.

Em oposição à lógica humanitária, essa postura, que calibra o custo humano em relação ao custo financeiro, traduz a versão do capitalismo neoliberal em nosso país em que o mercado pretende assumir a função do Estado submetendo-o ao imperativo, time is money (o tempo é dinheiro). Seria ingênuo ignorar o grave impacto econômico desta pandemia na estrutura da sociedade brasileira. Sabidamente, ele se dará a curto e a longo prazo. O Estado tem as prerrogativas necessárias para a adequação da economia à realidade da crise pela implementação de medidas que mitiguem os danos e as perdas dos segmentos mais afetados por meio de linhas de crédito, renda básica mínima e ampliação de benefícios sociais. Contudo, o que precisamos decidir, neste momento de pandemia, é qual referência de valor iremos associar ao tempo? Perda e desperdício ou proteção e solidariedade?

Com a pandemia em curso e sem desfecho previsível, precisamos retomar a responsabilidade da escrita desta narrativa que estamos construindo coletivamente, pois ela definirá se esta travessia dramática levará ou não a marca do trauma. Há o tempo de Cronos, tempo cronológico, marcado sequencialmente, modalidade organizadora do funcionamento da vida humana que nos permite acomodar nossos acontecimentos numa linha de continuidade entre passado, presente e futuro. É preciso esperar 24 horas para que um dia dê lugar a outro, e é preciso aguardar a passagem de 365 dias para que um ano se apresente como novo. No entanto, a despeito do ritmo compassado que giram os ponteiros, o tempo também é uma experiência que se produz de maneira singular, subvertendo os registros formais nas roupagens da fantasia, lembranças, devaneios, sonhos. Há, por fim, um outro tempo que nos desconcerta por não nos oferecer a previsão e o cálculo de quanto esta pandemia durará e se, em algum momento, nos alcançará. Não parece que estamos próximos do momento de concluir e, frente à incerteza, nos viramos e reviramos para inserir algum grau de normalidade no horizonte da espera: ler, comer, conversar, dormir, sonhar, exercitar, entediar e, por vezes, angustiar.

Por compartilharmos da vida cultural e da relação de mútua dependência que nos faz humanos, não é possível dispensar a marcação do tempo simbólico necessário à quarentena. Assim, no isolamento social – entendido aqui sob a ótica da solidariedade e do cuidado ao bem comum – estamos submetidos a uma espera que precisa ser partilhada por todos. Neste sentido, a música “Oração ao tempo”, de Caetano Veloso, pode servir de inspiração em seu apelo ao tempo. Num belo achado poético da música-prece, o tempo se revela compositor de destinos, por ser tão inventivo e por parecer contínuo. Assim como a letra da canção, precisamos fazer um acordo com o tempo para pedir tempo, tempo, tempo ….., para compor destinos singulares e coletivos. Se puder, fique em casa e, se puder um pouco mais, ajude outros a ficarem em casa. Há uma vasta rede de solidariedade atuando em favor de segmentos sociais que precisam dessa contrapartida.

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora