Colunas>Coluna APPOA
|
10 de março de 2020
|
10:58

Sua excelência, de corpo presente

Por
Sul 21
[email protected]
Sua excelência, de corpo presente
Sua excelência, de corpo presente
Obra do escritor angolano Pepetela venceu o Prêmio Literário Casino da Póvoa 2020. (Reprodução)

Luciano Mattuella (*)

Meu pai teve dois irmãos: um deles se tornou um professor de Economia de considerável destaque e reconhecimento, tendo lecionado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Seu nome era Juvir. Talvez tenha sido por influência dele que eu ingressei, em uma primeira escolha, no curso de Ciências Econômicas – foi só na disciplina de Cálculo II que eu percebi que a economia que me interessava não era aquela, mas a psíquica. O fato de eu estar numa sala de aula com mais sessenta pessoas e sendo ensinado por um professor que falava baixo olhando para o quadro também talvez tenha me influenciado. Hoje em dia agradeço aquele professor: me agrada o esforço para escutar. O outro irmão de meu pai foi o único dos três que permaneceu morando na serra gaúcha, tendo se tornado funcionário da prefeitura da Caxias do Sul: homem de sabedoria prática, Milton – era esse seu nome – trabalhava no “britador” de pedras da cidade. Era exímio na arte de contar histórias e de nutrir laços de amizade e afeição com todos. Milton talvez fosse, dos irmãos, o simbolicamente mais próximo de meu pai: para ambos, as pedras eram importantes – meu pai era geólogo. Provavelmente herdaram esta inspiração de meu avô paterno, pedreiro. 

Ambos também gostavam de palavras cruzadas e eram exímios assadores.

Quando Milton se via frente a uma situação em que, digamos, alguém não encontrou a solução mais brilhante, dizia, no tom próprio da sabedoria do tempo: “Não precisa muito estudo pra ser burro”. Todos riam. Eu acompanhava a risada, mas sempre ficava com algo me incomodando. Sim, realmente não precisa muito estudo para ser burro – por outro lado, a educação clássica também não é garantia de muita coisa, muito menos de caráter. Prova disso é o perfil de Eduardo Bolsonaro publicado na Revista Piauí deste mês (https://piaui.folha.uol.com.br/materia/viagem-do-vagao/), cuja foto principal viralizou nas redes nestes últimos dias: o deputado federal segura uma pilha de livros em que se destaca a palavra “idiota”, do título do livro do astrólogo que virou conselheiro-mor do governo. Adendo à máxima do tio Milton: não precisa muito estudo pra ser burro… nem pra ser um completo idiota. Ainda que, no caso de Eduardo Bolsonaro, a idiotice seja algo de que se orgulhar, como parece ter virado moda na sociedade brasileira.

Lembrei de Milton quando li, durante as férias, o mais recente livro de Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela, “Sua excelência, de corpo presente” (2018). Meu interesse pelo autor, confesso, é bastante recente. Infelizmente sou ainda um leitor excessivamente euro-centrado, fato que pretendo começar a mudar a partir deste ano – também preciso lidar com as minhas burrices. Li a seu respeito quando, por acaso, soube que foi atribuído a esta obra o Prêmio Literário Cassino de Póvoa de 2020, distinção principal do evento literário Correntes d’Escritas. Este encontro ocorre anualmente desde o ano 2000, tendo como foco as obras de escritores de língua portuguesa e espanhola, englobando a península ibérica, a América Central, América do Sul e a África lusófona. Já foram galardoados (como gostam de falar os amigos portugueses) autores como Rubem Fonseca (por Bufo & Spallanzani), Juan Gabriel Vásquez (por A forma das ruínas) e Carlos Ruiz Zafón (por A sombra do vento). Fazia algum tempo que um escritor africano não recebia o prêmio, injustiça amenizada neste ano.

Pepetela é um erudito com as mãos tingidas de luta por liberdade. Angolano nascido em Benguela, licenciou-se em Sociologia durante exílio político em Argel. Foi um dos nomes mais importantes do MPLA, o Movimento Popular de Libertação de Angola, uma instância de luta pela independência deste país com relação a Portugal (que acabou por se dar em 1975). Neste sentido, Pepetela junta-se aos “escritores combatentes” africanos como Mia Couto e tantos outros. Suas obras tratam, em sua maior parte do período colonial de Angola e da sensação de uma certa desilusão pós-independência. O conjunto de seus escritos foi reconhecido com o prestigiado Prêmio Camões em 1997 – prêmio aliás, recebido no ano passado pelo nosso Chico Buarque, para desgosto dos proto-fascistas no governo brasileiro (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/10/nao-assinatura-de-bolsonaro-e-um-segundo-premio-diz-chico-buarque-em-rede-social.shtml).

Em “Sua excelência, de corpo presente”, Pepetela conta a história de um ditador de um país africano genérico de uma forma bastante curiosa: o personagem – e também narrador em primeira pessoa – está morto e, a partir das lembranças evocadas pelas pessoas que “vê” chegando ao velório, tece a malha de sua vida, desde sua entrada no exército até a sua morte. O recurso literário é bastante conhecido, claro, pelos leitores de Machado de Assis – incontornável lembrarmos de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Mas a obra também evocou em mim alguns traços de Gabriel Garcia Márquez, especialmente no que se refere a uma precisa apreensão dos aspectos estruturais que parecem ecoar em boa parte da história dos países colonizados das América e da África. Ao lermos a narrativa do defunto, sentimos como se estivéssemos escutando os murmúrios dos fétidos porões ditatoriais tanto do nosso Brasil quando dos nossos irmãos americanos e africanos.

Mesmo morto, a preocupação do letrado idiota é a de saber quem assumirá o seu lugar, ter certeza que um rebento seu perpetuará o poder. Um dos personagens mais bem construídos do romance é inclusive o espião do governo, um homem de um olho só com os ouvidos mais aguçados da nação. Em certo momento, este sujeito se aproxima do caixão para compartilhar suas impressões do velório com o falecido chefe, num ato estranho de fidelidade post-mortem. É como se tivesse ouvido as apreensões do ex-governante, preocupado desde o princípio com um certo grupo que cochicha no fundo da sala, supostamente tramando a sucessão de poder.

No livro, Pepetela como que narra a história de muitos países, inclusive nos fazendo lembrar, infelizmente, no nosso contexto brasileiro, como na passagem seguinte: “O meu discurso recebeu grandes elogios nos órgãos de comunicação do Estado, únicos que podem funcionar regularmente num país de democracia avançado como a nossa, pois os independentes são pasquins, todos nós sabemos.” Lembremos do idiota que ocupa atualmente o Palhaço, digo, Palácio do Planalto, em recente afirmação de que “enquanto não começar a divulgar a verdade, não vamos mais falar com a imprensa, pode esquecer” (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/nao-vamos-mais-falar-com-a-imprensa-pode-esquecer-afirma-bolsonaro.shtml).

Como de costume, não vou contar muito do livro para não minimizar seu efeito no leitor. Mas gostaria de ressaltar o quanto a literatura de Pepetela nos ensina sobre a necessidade de ficcionalizar a vida para poder dar conta do traumático, seja este no âmbito pessoal, seja no coletivo político. Curiosamente, a ficção é um antídoto à mentira, recurso tão em voga nos nossos tempos. Não são poucos os ditadores que se recusam a morrer, como em “Sua excelência, de corpo presente”, deixando o legado de violência das certezas inventadas e das mentiras medidas. Em geral, são homens que disfarçam seu ímpeto necropolítico sob os paetês de praticidade, como o narrador de Pepetela: “No fundo, pouco interessa saber se a faca tem sentimentos, o que interessa é que corte bem”.

Meu tio gostava de presentear os amigos e parentes com facas personalizadas. Fazia-as com o esmero e a sapiência de uma prática pensada, calculada, carregada de experiência. O trabalho no material afiava um fio que cortava, mas que também enlaçava o encontro com o presenteado. Imagino que, para ele, as facas tinham sentimento.

Saudades do churrasco do tio Milton.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora