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24 de março de 2020
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11:17

O amor de Ulisses

Por
Sul 21
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Primeiros passos, 1890 (Van Gogh/Reprodução)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Em tempos de angústias, incertezas e medos, achei importante escrever sobre o amor.

Ulisses era o nome do meu avô. Apesar de suas poucas palavras, da postura rígida e exigente, eu o amava muito. Adorava ficar ao seu lado escutando rádio, raramente ele falava alguma coisa, quando mencionava algo era sobre o Grêmio, a Revolução Farroupilha ou a resistência francesa diante da ocupação nazista na segunda grande guerra. Coisa rápida, pois logo após repetia o mesmo mantra e voltava a ficar quieto: “Guri, é preciso estudar muito nessa vida…”.

Com o meu avô aprendi a apreciar o silêncio e a fazer semblante, quando criança podia ficar horas ao seu lado sem a necessidade de algo ser dito. Para compensar, as expressões faciais eram fartas, pois através de um simples olhar era possível prever o chimarrão, receber uma advertência, ou até mesmo, anunciar o esperado café com leite no meio da tarde. Tenho a leve impressão de que o fato de ter me tornado psicanalista tem alguma coisa haver com esse amor.

Hoje sonhei com Ulisses e acordei emocionado. Eu fazia massagem cardíaca nele na esperança de trazê-lo de volta. Ao acordar, lembrei que faltavam apenas alguns dias para que ele pudesse completar cem anos.

Uma coisa me chamou a atenção nesse sonho, apesar de ele não responder aos estímulos e as pessoas em nossa volta confirmarem o óbito, o seu corpo vertia suor. Acordei de sobressalto e sentei para pensar um pouco. Além do desejo Freudiano de mantê-lo vivo, a minha primeira associação foi de que ele sempre falava da importância das caminhadas para rejuvenescer, dizendo: “o velho quando se faz de velho está ferrado”. Ulisses não aceitava ajuda para levantar da cadeira, subir escadas, carregar sacolas, e ainda, dava um jeito para encontrar tempo e tirar da cartola outro bordão: “o uso do músculo leva à hipertrofia, o desuso à atrofia”. Sim, o suor fazia parte da sua vida.

Logo depois dessas associações lembrei de algo que tive a oportunidade de testemunhar há algum tempo, quando ele tinha noventa e três anos. Eu estava em Santa Maria, cidade natal da minha família, por ocasião de uma atividade na universidade. Era uma noite de inverno e eu havia encerrado os trabalhos por volta das vinte e duas horas quando recebi uma mensagem de minha mãe, dizendo-me – “tua avó passou muito mal, vai precisar baixar o hospital, pegue os documentos dela lá no teu avô”. Ao chegar na casa deles encontrei Ulisses em pé como se estivesse a postos para resolver algum problema, demostrando verdadeira disposição para ir até o hospital. Conhecia o meu avô e sabia o quanto seria difícil fazê-lo mudar de ideia, mas mesmo assim disse que em função do horário e de sua crônica dor nas pernas, as coisas poderiam piorar se ele fosse.

Breve parênteses, aquela cena me fez lembrar do único livro que ele me presenteou na adolescência: Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquês. Curiosamente, ele possuía dois em sua estante e isso me deixava intrigado: por que diabos alguém possui duzentos anos de solidão nas suas prateleiras? Hoje me dou conta: li Garcia Marques na esperança de conhecer um pouco mais dele.

Ao chegar no hospital, cerca de dois quilômetros de distância da casa de meus avós, vi uma cena bizarra: em função da falta de leitos, minha avó aguardava dentro da ambulância, ao lado da porta de emergência; minha mãe, irmãos e tios estavam todos em volta do carro pedindo providências. O ambiente era de preocupação com ela e também com ele, pois não nos demos conta de que naquela correria o deixamos sozinho. Quando estávamos resolvendo quem iria acompanhá-lo, olhamos incrédulos Ulisses entrando no pátio do hospital com passos lentos, porém decididos. Ele trajava uma bombacha, coisa que passou a usar só após os noventa, um pala marrom, o chinelinho de campanha e seu inseparável gorrinho cinza. Alguém resmungou algo do tipo: velho louco; mas ninguém duvidava dele ter vindo a pé, apesar de ser quase meia noite.

Tão logo chegou ao nosso lado, disse-nos: vocês não resolveram nada? Antes da nuvem da incompetência pairar em nossas cabeças vimos uma agitação dos socorristas retirando minha avó da ambulância e colocando sua maca logo após a porta de correr da emergência. Nisso veio alguém com aparelho de choque cardiogênico nas mãos e começou a contar um, dois, três, e no quatro, aquele objeto já estava nos peitos dela, fazendo levitar brevemente o seu corpo da maca. Tudo ocorreu ali mesmo, deixando-nos paralisados na posição de espectador. Nem todos, pois num piscar de olhos, meu avô já estava lá, ao lado dela, como se quisesse aproveitar o intervalo entre o choque e o afastamento dos profissionais para pegar na sua mão. Aquilo durou alguns segundos e deve ter ocorrido cinco, talvez sete vezes, não lembro ao certo. Ficou gravado na minha memória apenas o movimento dele dando um passo para frente e voltando outro para trás, como se estivesse a dançar a valsa da esperança para mantê-la viva.

Após aquele momento de tensão se dissipar e minha avó ter sobrevivido, a médica, ao saber que meu avô tinha ido a pé até o hospital e ter presenciado a angústia dele diante do desfecho daquela cena dramática, o abraçou e disse: “nunca tinha visto tamanha declaração de amor”. Diante do horror algo do belo prevaleceu, foi realmente um presente para todos nós.

Ao sairmos dali resolvemos levar o meu avô para casa. Depois de longo silêncio dentro do carro, meu primo falou em tom de indignação – “O senhor não podia ter feito isso a essa hora da noite, tem craqueros nas esquinas. Já pensou se tivesse sido assaltado, agredido, teríamos problemas maiores ainda, não basta a avó”? Ao que meu avô responde – “e quem tem medo de assalto”? Meu primo devia ter ficado quieto, talvez pudesse guardar na lembrança a cena de amor que não foi capaz de perceber, entretanto, resolveu dizer: “isso é coisa de quem está com a cabeça fora do lugar”. Ulisses olha nos olhos dele e diz – “quem sabe sobre o amor, quem já amou verdadeiramente alguém, não diz uma besteira dessas”.

O silêncio pairou no ar. Nesse momento, Ulisses fez massagem cardíaca em todos nós.

Foi forte ouvir aquilo e ver o embaraço envergonhado do meu primo. Mas, ao mesmo tempo, aquele testemunho me tocou profundamente; fiquei pensando muitas coisas, entre elas que eu nunca havia escutado alguém reconhecer o amor como um saber, e também o quanto as burocracias de nossas vidas podem nos impedir de reconhecer pequenas frestas do belo em determinadas situações.

Após alguns dias minha avó me disse: “não foi aquele choque que me trouxe de volta, foi o amor de Ulisses”.

Em tempo: para que possamos enfrentar essa pandemia e resgatar a nossa liberdade de viver, por favor, por amor a si e aos outros, fiquem em casa.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor do livro Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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