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3 de março de 2020
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10:38

Jesus da gente

Por
Sul 21
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Jesus da gente
Jesus da gente
Desfile da Mangueira levou Jesus da Gente à Sapucaí (Reprodução)

Gerson Smiech Pinho (*)

Mesmo que a enxurrada de imagens e notícias que invade as redes virtuais diariamente venha banalizando coisas que trariam motivos para gerar assombro, há algum tempo atrás, uma postagem não deixou de produzir em mim uma boa dose de perplexidade. Enquanto navegava pelo Facebook, me deparei com uma representação de Jesus Cristo empunhando uma pistola. A estética da gravura lembrava muito a iconografia religiosa presente em minha infância, vivida em um contexto fortemente católico e cristão, o que talvez possa justificar em parte o impacto daquele elemento que parecia tão estranho à cena.

A arma depositada nas mãos do filho de Deus despontou como uma espécie de iceberg diante da embarcação que transportava os restos de minhas memórias e crenças infantis. Como conciliar dois elementos absolutamente incompatíveis – Cristo e um revólver –, os quais não poderiam, do meu ponto de vista, integrar o mesmo cenário sob hipótese alguma? Recordei os versos de Nando Reis, em “Relicário”, os quais exprimem em boa medida o sentimento na ocasião: “O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou. O que está acontecendo?”

Mas isso não era tudo. Abaixo da imagem, encontrava-se ainda uma passagem do Velho Testamento que sugeria a ausência de culpa para quem matasse um ladrão que estivesse arrombando sua casa. O conjunto da postagem, com o Cristo armado associado ao versículo, compunha uma tentativa de traduzir em termos bíblicos o adágio “bandido bom é bandido morto”, o que se confirmava através dos comentários de algumas pessoas que visualizaram a publicação. Sob tal perspectiva, o cidadão que desejasse adquirir uma arma poderia dormir tranquilo – estava autorizado a usá-la sem sair do espírito cristão, desde que o alvo justificasse seu próprio assassinato. Algo tão insólito quanto o slogan “armas pela vida”, mote da apologia ao armamento.

Quem incita o ódio sugerindo o uso de armas, como na situação evocada, tem consciência que seu ponto de mira é o extermínio do outro cuja existência não é reconhecida como digna de ser vivida. Ao mesmo tempo, ao se amparar no preceito religioso, tenciona não se responsabilizar pelas consequências daquilo que está enunciando, como se não as conhecesse. Desse modo, concebe ser possível prescrever a violência em nome do bem, da vida e da justiça, sem admitir que tal postura tem como efeito disseminar o próprio mal que aparentemente declara abominar. Tal é o modo como opera o discurso cínico, empenhado em ocultar o que sabe sobre seus efeitos, simulando desconhecer a verdade que o sustenta.

Este tema foi chacoalhado no carnaval carioca deste ano, por pelo menos uma das escolas de samba que entrou na avenida. Com o samba-enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, a Estação Primeira de Mangueira cantou:

“Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem Messias de arma na mão
Favela, pega a visão
Eu faço fé na minha gente
Que é semente do seu chão”

Embalada por estes versos, a Mangueira narrou a biografia de Jesus Cristo, retratou diversas passagens de sua vida, apostou com fé na sua gente e fez dele um sujeito pobre de periferia. Sem Messias de arma na mão, a escola identificou a figura de Cristo a diversos grupos minoritários – mulheres, negros, índios e LGBT. Ao final, exibiu um carro alegórico denominado “Calvário”. Sobre ele, uma imagem com cerca de vinte metros de altura do “Jesus Cristo Negro”, crucificado, com os olhos voltados para o alto e o corpo perfurado por balas.

As diversas faces de Cristo apresentadas pela Mangueira comovem e também desconcertam, mas em um sentido bem distante da postagem do Facebook referida anteriormente. Em um país em que negros e índios são diariamente assassinados, em que as taxas de feminicídio e de violência contra a população LGBT são recordistas, a espetacular arte da escola de samba pôde revelar uma parcela da realidade que experimentamos, sem disfarçá-la ou ocultá-la. Trouxe para a avenida o “Jesus da Gente”.

“Eu sou da Estação Primeira de Nazaré
Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher
Moleque pelintra no buraco quente
Meu nome é Jesus da Gente”

Se “brincar” é o verbo que costuma ser empregado para representar a folia carnavalesca, talvez a atividade lúdica infantil possa oferecer pistas para compreender o que se passou neste carnaval, especialmente crítico e politizado, não só pelo desfile da Mangueira, mas também pelo que se produziu em outras escolas de samba e nas ruas de todo o país. Quando uma criança brinca, apropria-se dos elementos que compõem sua realidade para propô-los em outra posição, oferece a eles um outro sentido. Atividade criativa e transformadora por excelência, por esta razão tão prazerosa, quando se brinca torna-se possível dar outro colorido à vida, fazer dela algo diferente do que é. Assim, saudemos o que foi possível brincar neste carnaval, com votos de que o ato criativo ali proposto se estenda sobre aquilo que possa vir a pesar sobre nós para além de fevereiro.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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