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17 de março de 2020
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11:57

“Exploradores do abismo”

Por
Sul 21
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“Exploradores do abismo”
“Exploradores do abismo”

Lucia Serrano Pereira (*)

Histórias que tem a ver com formas diferentes de se relacionar com a angústia, mas que também são histórias sobre uma criatividade extrema que pode surgir ( que não é garantida, mas que por vezes pode aparecer) quando se está a um passo do abismo “e queremos que esse passo nos mantenha vivos, mas fora daqui”.

Enrique Vila-Matas, faz o convite para quem quer se aventurar nesta direção. Escreve e reúne em Exploradores do abismo contos com personagens que vão até a beirada e fazem ali o relato de seu encontro. Lugar insólito, instável, claro que a beira do abismo implica todos os perigos. Mas é por aí que ele vai, lança no mundo narradores que tomam para si a pergunta: o que pode haver fora daqui?

MIles Davis (Creative Commons – CC BY-SA 4.0)

O fora daqui é provocante. Como ler essa expressão? Há algo de expulsão e de contramão, não no sentido de uma fuga, mas ao contrário, de poder enfrentar e achar de algum modo como fazer um encontro diferente do esperado em matéria de abismo. Não um puro buraco negro por onde poderíamos cair sem paradeiro, mas coisa de outra ordem, algo outro. É essa delicada operação que está em jogo; a operatória do fazer diferença. Propriedade valiosa para carregarmos junto. O “exploradores…” não é livro lançamento de agora, mas vem, valioso no trilhar nosso tempo.

Recebi esses dias umas linhas especiais do Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, que pareceram encontrar nosso autor catalão como se ele e Calvino conversassem.

Em Calvino o inferno é algo que já está aqui, está na vida cotidiana. Duas possibilidades, a mais fácil é aceitar, se misturar e a tal ponto se fundir nele que já não vamos percebê-lo (mas a que preço). O outro caminho, ele alerta, é bem arriscado e é preciso estar atento para poder fazer a aprendizagem: se trata de buscar saber reconhecer “quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, abrir espaço”.

Como na canção de Gilberto Gil – “fogo eterno pra afugentar O inferno pra outro lugar, Fogo eterno pra constituir O inferno Fora daqui”.

Vila-Matas abre o livro com o conto Café Kubista dizendo que todo livro nasce de uma insatisfação, de um vazio. Para ele escrever tem a ver com preencher esse vazio. E seu personagem vai caminhando por Praga, em direção ao café, totalmente inspirado pela lembrança das palavras de Kafka, que afirmava: “Fora daqui, este é o meu objetivo.”

Animado pelos efeitos de estar no café cubista (que tem sua história no conto e mesmo na história da cidade e nos percursos de Kafka) se deixa inspirar pelo movimento dos artistas do início do século XX. Pelo gosto dos cubistas por expandir as dimensões de certos espaços, deixando a fixidez da perspectiva clássica. Quem sabe com isso, com a ampliação do espaço, se possa acolher a passagem de um ou outro explorador de abismo que por ali venha a querer atravessar, ele pensa. Fora daqui, dialogando com os limites, e até mesmo forçando para além.

E assim vamos acompanhando outros aventureiros.

O narrador do último conto, ah, esse vai conseguir criar a imagem. A voz é misturada com a do autor. E relata a experiência que teve quando criança, quando assistiu Miles Davis em Barcelona tocando seu trompete no Palau de la Musica Catalana (lugar ultra mágico) no espetáculo de jazz que ficou conhecido pelo grande escândalo que causou. Sua apresentação foi criticada pela plateia porque ele virava de costas para o público, tocando como se quisesse se manter escondido ou como se “tivesse sido assassinado por seu próprio trompete.”

Essa acusação tinha outras vertentes – uma delas, a de que sua atitude era um protesto contra o racismo. Um negro orgulhoso virando as costas para aquela plateia branca. Leituras referidas na biografia de Miles Davis.

Nosso narrador, na época, preferiu pensar uma coisa muito simples, tomando outro elemento. Que Miles Davis se virava para que pudesse ficar só consigo mesmo e desta forma tocar melhor, mergulhado, mais livre. Sem dúvida tinha se dado conta da qualidade excepcional da acústica daquela sala, e que tocando mais para o fundo, mais fundo no palco poderia se concentrar em sua música. Ficar mais próximo do abismo para expandir o som. Nas fotos das performances de Miles, não só no Palau mas ao longo de sua carreira, inúmeras vezes a imagem registra seu modo de tocar, corporalmente curvado, como que mergulhando sobre si mesmo com seu instrumento. Talvez imagens mesmas da exploração criativa de um abismo…

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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