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4 de fevereiro de 2020
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10:52

Violência à brasileira

Por
Sul 21
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Violência à brasileira
Violência à brasileira
 Foto: Joana Berwanger/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Dentre as várias urgências –aquilo que não pode ficar à espera – que marcam o drama contemporâneo em nosso país, o tema da violência se impõe como um dever ético que nos concerne. A redução de alguns indicadores, recentemente divulgada, não pode servir para recobrir a realidade da ocorrência sistemática e crescente de crimes que tem em comum a questão de gênero: feminicídios e crimes transfóbicos. Diferentes pesquisas colocam o Brasil entre os países com maiores índices nos rankings destes dois tipos de crimes, dados que consagram um repertório de agressão física, moral e psicológica que os antecipam na violação de direitos humanos fundamentais como à garantia à igualdade e à liberdade.

Em pouco mais de cinco meses, Santa Maria (RS) acompanhou o assassinato de quatro travestis/mulheres trans, além de um quinto caso no interior de um município próximo. A despeito disso, o manto da “normalidade” se manteve intacto.

Apesar de ser uma experiência que se distribui nos diferentes extratos da sociedade brasileira, a violência apresenta marcadores sociais privilegiados que apontam para segmentos que, historicamente, já convivem em alguma zona de violência simbólica. Nesse sentido, o viés psicopatológico ainda é um fantasma que assombra a comunidade Lgbt+ nos campos da cultura, dos costumes, da educação e da saúde, mesmo após a sua retirada dos códigos classificatórios psiquiátricos, conquista que se deve mais à pressão dos movimentos sociais do que ao reconhecimento da dita comunidade científica. Impregnados por uma única forma de conceber à vida, produzimos diferentes estratégias de discriminação que deslegitimam valores e gostos distintos daqueles que ordenam nosso (pequeno) mundo. Alicerçados neste universo e com o consentimento do Estado, naturalizamos o processo de vulnerabilização e constrangimento com determinados sujeitos de tal maneira que seus corpos sejam mais propensos a serem perseguidos, violentados e eliminados.

Assim, aquilo que se apresenta como diferente pode deslizar rapidamente para a condição de estranho, tornar-se ameaçador e, na sequência, ser requerido o seu expurgo, reeditando a pretensão totalitária e desumana sobre as singularidades da vida. Sejamos claros, a violência simbólica antecede e prepara a violência concreta sobre o corpo, fato que nos inclui como parte interessada no contexto de intolerância e discriminação que atinge a comunidade Lgbt+ e, atualmente, em maior escala, a população travesti/trans.

A extensão do pensamento psicanalítico nos permite dizer que o extermínio do outro descreve uma das consequências possíveis do encontro do sujeito com um objeto cujo semblante porta um grau de indeterminação que lhe produz um efeito de estranheza familiar (das Unheimliche). Ao vacilar as determinações identitárias, o semblante trans interroga as fronteiras do sujeito com a alteridade, tornando-os arriscadamente próximos o que pode fazer emergir uma experiência de angústia no eu. Movida pelo ideal racionalista da modernidade, a exclusão da loucura justificava-se pelo não reconhecimento da dimensão humana desta experiência a partir das leis da razão.

Como nos lembrou Foucault, durante este período, os loucos representavam uma obscura desordem, um caos que se opunha à luminosidade da mente. Assim, a segregação dos loucos mantinha a ilusão do domínio da razão para o restante da humanidade. Os loucos tinham que carregar a sua loucura e a loucura de todos os outros “normais”, deixando evidente a função política que sustentava tal processo e que, em alguma medida, guarda semelhança com a conjuntura que estamos tratando.

O fato da psicanálise advogar a ética do um-a-um (uma-a-uma) para a sua prática, produziu um mal-entendido histórico: a de que seu interesse pela singularidade se colocaria em oposição à cultura. Distante disso, a investigação psicanalítica sustenta que não é possível pensar nenhum fenômeno fora do campo discursivo onde o mesmo se inscreve, cabendo a nós acolher os efeitos subjetivos supostos desta relação. Com base nisso, é possível ver a marca individual impressa em cada manifestação de violência, esboço e indicativo da perturbação íntima e condição necessária à responsabilização ética e jurídica do sujeito. Contudo, cada um destes atos atualiza e recupera a conexão com registros históricos que nos fazem ver que, em nosso país, a violência se apresenta como um recurso possível e legítimo de tratamento para o outro (o diferente) sempre que este se põe como ameaça ou em posição de recusa a ser instrumento de gozo. Nesse sentido, o número desconcertante de assassinatos de mulheres e da população Lgbt+, em especial, travestis e mulheres trans no Brasil, é um assunto que nos implica, justamente, porque desvela uma perspectiva de interpretação sobre nós mesmos e sobre nosso país.

(*) Psicanalista, membro da APPOA. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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