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11 de fevereiro de 2020
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10:53

Santinha – quelônios, família e algumas surpresas

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Sul 21
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Santinha – quelônios, família e algumas surpresas
Santinha – quelônios, família e algumas surpresas
“Levei mais de quinze anos para realizar que Santinha fazia parte da família” (Foto: Arquivo pessoal)

Robson de Freitas Pereira (*)

Faz uns 15 anos que ela está na família. O neto (Lucas) ganhou de presente no aniversario de sete anos. Coisas do avô que gostava de bichos. Ela tinha uns dois meses, cabia numa caixinha pouco maior que de fósforos. O tempo passando, ela crescendo e me surpreendendo com seu tamanho maior a cada visita. Me contavam que tinha um lugar na área do apartamento, para tomar água e se alimentar – frutas e legumes em geral. Salvo uma vez que fazendo um churrasquinho caseiro deram um pedaço para ela provar. Foi o que bastou para que ela passasse um tempo tentando morder o dedo dos pés das pessoas. Depois passou este ímpeto; para alívio das donas da casa e das visitas.  Santinha voltou ao seu regime de frutas e legumes e seu cotidiano de circular por todos os cômodos da casa.

Chegava a ficar “desaparecida” por semanas; travada na perna de alguma cama, armário, ou embaixo da máquina de lavar roupas. Porém, um belo dia, ela reaparecia como se nada houvesse acontecido. Com seu andar característico de jabuti; sem pressa, mas determinado (também conhecido como passo de cágado). Sem falar que boa parte de sua região de trânsito é de piso frio, o que dificulta o apoio de suas patas traseiras (cujas unhas são mais compridas que as dianteiras) e, por conseguinte, não dá para fazer correrias.

Há uns seis anos a surpresa: Raquel, sobrinha com formação veterinária, examinando Santinha vaticinou; ela é macho! Deveria se chamar Santinho. Não colou. Depois de tanto tempo nomeada, ninguém consegue chamar pelo novo gênero. Como ela não fala, tampouco escreve e, seus hábitos alimentares e de comportamento de tartaruga não mudaram por causa da descoberta surpreendente, segue Santinha. Prevaleceu o costume, mesmo que nas conversas atuais sempre seja lembrado que o artigo definido mudou – o Santinha.

Para mim, o mais surpreendente foi o fato de que levei mais de quinze anos para realizar que Santinha fazia parte da família, era/é uma tartaruga doméstica (um dos pets favoritos para crianças; informação facilmente disponível em vários,  sites na internet). Santinha agora está muito mais sociável: em nossa última visita ela insistia em vir para a sala onde estávamos reunidos. Derrubava o cercadinho onde a colocavam e vinha para o convívio, como se soubesse que ali estava o centro das atividades. Gosta de subir nos pés das pessoas, como se fossem pequenas pedras, parecia reconhecer os familiares e não estranhar os visitantes. Parece saber que não pode mais morder ninguém e não o faz.

A psicanálise (mas não somente) nos ensina que sustentar a capacidade de se surpreender é fundamental para a persistência do desejo. Possibilita reconhecer a diferença, ali onde tudo parece o mesmo, contínuo, fixado.

Passamos muito tempo olhando sem enxergar, vendo sem saber olhar.  É importante aprender a “ler” os sinais que mostram a descontinuidade, não fazer o recalque, ou a denegação das diferenças, para o bem e para o mal.

Naturalizar um cotidiano, pode aos poucos embrutecer, fazer a delicadeza desaparecer. Santinha estava presente na família há quinze anos, pude reconhecê-la, suas formas, desde um outro olhar há pouco; por um detalhe, um traço, uma fresta onde se abriu a possibilidade de vislumbrar algo novo, quando tudo parecia igual. 

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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