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18 de fevereiro de 2020
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10:57

Pedofilia no corpo social e suas consequências no corpo do outro

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Sul 21
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Pedofilia no corpo social e suas consequências no corpo do outro
Pedofilia no corpo social e suas consequências no corpo do outro
O escritor francês Gabriel Matzneff, acusado de pedofilia. (Reprodução/Youtube)

Alfredo Gil (*)

Em 2013, o sociólogo Pierre Verdrager publicou L’Enfant Interdit – comment la pédophilie est devenue scandaleuse (A criança proibida – como a pedofilia tornou-se escandalosa). Ele relata numa pesquisa amplamente documentada a maneira como a pedofilia tem ocupado quase quotidianamente os debates nos espaços públicos. Não somente pela revelação do número de casos reais, mas pela evocação frequente deste problema na imprensa, no âmbito da justiça, na política de proteção da criança, além da ameaça que paira nas instituições de todo tipo.

Na França, atualmente, acompanham-se ao menos três casos de pedofilia com uma ampla cobertura. Três situações em que atos de abuso sexual ou estupro de menores aconteciam em lugares onde, de costume, cultivam-se valores morais, éticos, e que participam do desenvolvimento e bem-estar de uma criança.

A primeira delas é a igreja católica. Há tempos que as instituições religiosas têm sido o palco destas violações. No mês passado, o padre Bernard Preynat, após ter sido julgado em julho de 2019 pelo tribunal eclesiástico, foi definitivamente condenado pelo tribunal de justiça da cidade de Lyon. Ele reconheceu ter abusado sexualmente, entre 1972 e 1991, de várias crianças. O excelente filme de  François Ozon, « Grâce à Dieu » ( 2018 ) retrata as lembranças de cada adulto que tiveram parte da sua infância confiscada pelo padre Preynat, sobretudo durante os acampamentos de confraternização.

 No âmbito esportivo, o último escândalo foi revelado, também no mês passado, pela campeã mundial de patinação artística  Sarah Abitbol. Aos 44 anos, ela publica Un si long silence ( Um longo silêncio ) em que conta o estupro sofrido aos 15 anos e os abusos sexuais que continuaram até os 17 anos, da parte do seu treinador, Gilles Beyer, que reconheceu igualmente seus atos. 

 O terceiro campo de ataque desta espécie de predador foi revelado no mundo das letras. Também publicado em janeiro deste ano, trata-se do livro de Vanessa Springora, Le Consentement ( O Consentimento ), em que a autora narra sua relação iniciada aos 13 anos com o escritor quinquagenário Gabriel Matzneff. Já tivemos sobre este livro, neste mesmo espaço, uma ótima análise de Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr

 Dessas três situações, esta última é sem dúvida a mais desconcertante. Mas antes vale ressaltar algumas particularidades em relação às duas precedentes. Primeiramente, e contrariamente ao padre e ao treinador, que reconheceram o aspecto transgressivo dos atos e se desculparam, Gabriel Matzneff afirma ter vivido sobretudo uma linda e recíproca história de amor. Segunda, se uma tal forma de dominação de um adulto sobre uma criança perdurou durante tanto tempo, ela não foi possível unicamente por astúcia e discrição dos agressores. Nos casos do padre e do treinador houve omissão, senão condescendência, por parte de outros adultos, tanto na igreja como no clube de patinação, garantindo tolerância com o que acontecia apesar do conhecimento de causa de tantos, mantendo um sistema que colocava as vítimas em um silêncio abissal sem possibilidade de reação. Constata-se, nestes casos, que as vítimas pagam sempre um duplo tributo: primeiro, a violação que sofrem repetidamente, quase ritualmente, no corpo, poderia-se dizer na carne. Segundo, e por consequência, a culpa de uma transgressão que lhe é imposta mas que não diz seu nome e se transforma em vergonha, impedindo, assim, o pedido de socorro.   

Vanessa Springora estava profundamente apaixonada pelo escritor. Este encontro mudou o rumo de sua vida. As lembranças de um pai violento e desmedidamente ciumento cedeu então aos atributos do amor que ela só conhecia na literatura. Menina tida como taciturna pode finalmente se iluminar aos olhos do homem que dizia  e repetia o encanto do que estava vivendo com ela. 

A escritora não recusa a possibilidade de uma relação com uma tal diferença de idade sob a condição que o amor seja o cimento da união, e, sobretudo, que a relação seja excepcional. « Por que uma adolescente de 14 anos não poderia amar um homem 36 anos mais velho se ela (a relação) é única e sublime ? ». Por isso acrescenta : « A situação teria sido bem diferente se, apesar de toda moral, ele tivesse sucumbido à minha juventude, após ter tido anteriormente relações com outras mulheres de sua idade, e que, sob o efeito de um « coup de foudre », irresistível, tivesse cedido uma vez, mas a única, a este amor por uma adolescente. Neste caso, tudo bem. Nossa paixão extraordinária teria sido sublime ».    

Ora, a jovem adolescente com seu frescor e ingenuidade, banhada num certo espírito literário à la Saint Germain des Près, naqueles anos (nos anos 70), não tinha como imaginar o contrário. Na realidade, Gabriel Matzneff  fazia parte de um grupo nem tão amplo, mas notório, que cultivava, promovia e reivindicava relações com menores de idade. Tais relações eram a matéria prima de seus jornais íntimos e ensaios publicados por grandes editoras. 

Logo, Gabriel Matzneff não era um pedófilo que agia isoladamente. No trabalho do sociólogo Pierre Verdrager, citado inicialmente, as publicações de Matzneff  ocupam uma página e meia nas referências bibliográficas Ou seja, mais uma vez, em comparação com os casos do padre Preynat e do treinador Gilles Beyer, Matzneff mentia e escondia suas práticas depravadas de sua adolescente apaixonada, mas, socialmente, o escritor militava pelo reconhecimento da pedofilia. Com argumentos históricos numa lógica naturalista dizia-se que relação sexual entre um adulto e uma criança data da cultura greco-romana. Com os argumentos da liberdade sexual do pós-68 afirmava que uma criança é considerada como um sujeito autônomo capaz de viver plenamente sua sexualidade. Tudo isto era amplamente divulgado na imprensa escrita: Le Monde, Libération, além de revistas « especializadas » como « Petit Gredin », explicitamente pedófila.

 Numa tonalidade mais vitimista, os pró-pedófilos quando se sentiam discriminados, não hesitavam a se compararem com a condição judaica dos anos da guerra: « o vizinho que foi judeu, depois terrorista, hoje é o pedófilo » (Revista Gai Pied). Bem mais próximo de nós, ou seja, em 1997, e, como dizia inicialmente, ainda mais desconcertante, é o que se pode ler na revista « L’Inifini », editada por Philippe Sollers. Diz ela:  « hoje em dia, se colocarem os « pederastas » em campo de concentração não haverá uma voz para se opor…o amoroso das crianças está na situação similar do judeu de 1940 » (Bertrand Boulin).  

Em janeiro de 1977, Matzneff lança uma petição no jornal « Le Monde » em defesa de três homens condenados por relações sexuais admitidas com crianças de doze a quinze anos. Ele contesta a « detenção preventiva para instrução de um simples caso de ‘condutas’ no qual as crianças não foram vítimas da mínima violência…( a detenção ) nos parece escandalosa…Três anos de prisão por carinhos e beijos ». A petição recolheu assinaturas importantes como as de Louis Aragon, Roland Barthes, Simone de Beauvoir, François Chatelet, Gilles Deuleuze, Jack Lang, Jean-François Lyotard, Jean-Paul Sartre, Philippe Sollers, e muitos outros.

Enfim, e muito recentemente, vale lembrar que Matzneff recebeu em 2013 o prestigioso prêmio Renaudot e que Antoine Gallimard – gerente da prestigiosa editora do mesmo nome  – tocado pelo O Consentimento tomou a decisão (somente agora) de não mais publicar as obras de Matzneff. Bernard Pivot, ator de grande relevância no debate das Letras e das Ciências Humanas durante décadas, presidente até o ano passado do prêmio Goncourt, convidou Matzneff a cinco ocasiões em suas emissões literárias. Ele responde, hoje, que « livros como o de Matzneff eram publicados sem que a justiça interviesse, sem mesmo que as associações de defesa da criança e da família protestassem, » e lembra que tudo isto se dava na onda do pós-68 « il est interdit d’interdire ». Ele lamenta não ter tido uma outra posição, mas acrescenta um tweet afirmando que « nos anos 70 e 80, a literatura passava antes da moral; hoje a moral passa antes da literatura. Moralmente é um progresso. Nós somos mais ou menos os produtos intelectuais e morais de um país, e sobretudo, de uma época. » 

Matzneff não pode mais ser julgado pelos atos que cometeu, beneficiando-se de uma prescrição de pena, já que os eventos datam de mais de trinta anos. Condená-lo socialmente em 2020 parece uma evidência. Mas, compreender o mecanismo de uma esfera importante da sociedade que legitimava suas atuações (e de outros) é mais complicado. O que é julgar e condenar uma época ? Pode-se processar um momento histórico evitando os anacronismos ?  

Preferimos evitar conclusões precipitadas, mas podemos evocar tais acontecimentos para alertar que, talvez, possam existir em torno de nós, atualmente, no nosso cotidiano, outras aberrações que passem despercebidas (ou que não queremos ver) e, sobretudo, que estejam sendo vividas, apreciadas, como válidas. 

Para terminar convido o leitor a deixar a pedofilia tal como é tratada, conforme as épocas, no corpo social, e ler o que se passou no corpo de Vanessa Springora após o desencanto, uma vez que descobriu a verdadeira face do homem que tanto amou, ou seja, segundo suas palavras, a partir do momento em que decide não ser mais para ele « esta boneca sem desejo…o instrumento de um jogo que lhe é estrangeiro ».   

« Como ter uma prova tangível da minha existência? Sou bem real?  Para ter certeza, parei de comer. Para que se alimentar ? Eu não caminhava mais, eu deslizava no solo, se tivesse batido os braços, sem dúvida teria voado. Já que meu corpo resistia à ausência de alimentos, porque ele teria necessidade de dormir ? Mantinha os olhos abertos e mais nada interrompia a continuidade entre dia e noite. Até o dia em que fui verificar no espelho se meu reflexo ainda estava lá…fuga da alma através dos poros da pele. » 

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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