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14 de janeiro de 2020
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10:35

Sobre os ossos dos mortos (2019)

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Sul 21
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Sobre os ossos dos mortos (2019)
Sobre os ossos dos mortos (2019)
Sobre os ossos dos mortos, obra da vencedora do Nobel de 2018 Foto: Divulgação

Luciano Mattuella (*)

Sempre fui assombrado pelas simetrias.

Costumam me produzir encanto as mais variadas formas de paralelismo: a árvore cujos galhos formam um círculo, as ruas asfaltadas com esmero, a linha reta que demarca o encontro entre dois volumes d’água, as histórias que se alinham em seus detalhes, a altura na face em que os olhos se distanciam um do outro… Sim, encanto. Por outro lado, há algo profundamente aterrador na simetria. O mundo de verdade não se desenha no perfeito paralelismo: os galhos das árvores se despedem do tronco a distâncias diversas, há sempre uma pedra fora do lugar no meio-fio (aquela que o pneu do carro insiste em encontrar), os corpos (d’água, mas também os outros) conflitam nas suas diferenças, o fim da história sempre deixa uma ponta solta, a face humana é um enigma geométrico – a perfeita beleza é artificial.

Esse terrível apaixonamento pela simetria talvez seja herança de meu pai. Lembro que ele tinha um pequeno cacoete, desses que julgamos passar despercebidos para os outros: volta e meia ele batia levemente o polegar em uma mesa ou braço de cadeira – pouco depois, fazia o mesmo com o polegar da outra mão. Havia uma certa constância que me agradava nisso: sempre que um polegar encontrava a superfície, eu sabia que logo o outro faria o mesmo. Como uma predestinação ou uma lei singela e particular: os polegares devem agir em espelho. O simétrico passa a falsa ilusão de controle sobre o mundo. É também a verbalidade em que se conjugam as verdades científicas: a solução do problema é simétrica ao seu enunciado. Não há tempo na simetria, nada muda: eterna repetição de um mesmo verso. A simetria é uma das formas seculares do juízo final.

Talvez tenha sido por isso que tenha gostado tanto de “Sobre os ossos dos mortos”, de Olga Tokarczuk, publicado aqui no Brasil pela editora Todavia em 2019. Tokarczuk é um dos nomes vencedores do Prêmio Nobel de Literatura do ano passado – junto dela, também ganhou o austríaco Peter Handke, em um ano em que o prêmio foi entregue a dois escritores, uma vez que o mesmo não foi realizado em 2018.

Tokarczuk é polonesa, nascida em 1962, formada em Psicologia pela Universidade de Varsóvia; chegou a trabalhar na clínica antes de se tornar escritora: algo que, aliás, parece fazer bastante sentido, uma vez que explicita o apreço pela palavra. Ganhou o prêmio Man Booker International Prize em 2018 pelo seu livro “Bieguni”, traduzido para o inglês como Flights. “Sobre os ossos dos mortos” é seu primeiro livro publicado no Brasil.

Nesta obra, o leitor estará frente a uma história em estilo noir, uma narrativa que traz elementos de suspense e de reflexão filosófica. Há algo do cenário – as montanhas geladas da fronteira entre a Polônia e a República Tcheca – que se faz atmosfera da escrita. O texto de Olga Tokarczuk é frio, mas convidativo, adentrando fundo na psiquê da personagem principal, Janina Dusheiko. Janina é uma senhora já de alguma idade que vive em um vilarejo isolado onde cuida das casas de turistas, dá aulas de inglês, traduz William Blake e estuda astrologia. O título do livro, aliás, faz referência a um escrito de Blake chamado “O casamento do céu e do inferno”, de 1790: “No tempo da semeadura, aprende; na colheita, ensina; no inverno, desfruta. Conduz teu carro e teu arado sobre a ossada dos mortos”.

O enredo é, à primeira vista, absolutamente comum em histórias de mistério: de uma hora para outra, pessoas começam a ser mortas em um lugar anteriormente tão pacato. A primeira vítima é um vizinho a quem a senhora Dusheiko chama de “Pé Grande”: quando chegam à sua casa depois de sentirem sua falta por dias, vêem que o homem foi morto por ter engasgado com um pequeno osso. A esta morte aparentemente acidental, entretanto, seguem-se outras, cada vez mais bizarras, sobre as quais não falarei aqui para não estragar a curiosidade do leitor.

A simetria é uma marca registrada de Dusheiko. Sua paixão pela astrologia é a maior evidência deste seu traço: Janina se dedica obstinadamente a produzir o mapa astral dos habitantes do vilarejo, procurando deduzir dali todas as suas características anímicas, suas mudanças de comportamento e, inclusive, a data de sua morte. Para ela, “o fato de não termos consciência do que vai acontecer no futuro é um erro terrível na programação do mundo”. A falta de simetria como algo a ser solucionado, como uma falha. Para Dusheiko, tudo pode ser explicado pela forma como os astros se alinham. O que nos faz perguntar, o tempo todo ao longo da leitura, onde está aquilo que faz de nós humanos, ou seja, esta nossa dimensão que resiste às determinações do destino. É como se a história mantivesse uma outra narrativa em paralelo, por detrás do texto: uma reflexão profunda a respeito do livre-arbítrio e da determinação.

O meu primeiro ponto de encontro com o livro foi justamente o meu gosto há tempos por um poema de William Blake, talvez o seu mais famoso, chamado “O tigre”. Os primeiros versos me inquietam: “Tigre, tigre, viva chama / Que as florestas da noite inflama, / Que olho ou mão mortal podia / Traçar-te a horrível simetria?”. Este embate entre o imponderável na natureza e o ímpeto humano pela simetria sempre me comoveu: é nossa a ganância pela produção do simétrico; assim como também é nosso a pavor por aquilo que não sabemos explicar. O mistério é uma figura da assimetria.

Ao longo da leitura de “Sobre os ossos dos mortos”, somos convidados a acompanhar a investigação dos assassinatos, mas o foco da autora não está nos meandros detetivescos. É a partir da voz em primeira pessoa de Dusheiko que somos apresentados a este mundo que beira o realismo mágico, a partir de sua vida cotidiana e seu clamor por justiça – uma outra forma de simetria, aliás. Os personagens surgem como manifestações da interioridade de Dusheiko: um amigo que traduz Blake junto dela, um entomologista abandonado pelos seus alunos, um médico dermatologista que fala mal o idioma polonês. Quanto mais sabemos destes personagens, parece que mais conhecemos a protagonista da história.

Em uma espécie de homenagem às famosas narrativas de mistério, o final do livro acaba espelhando a própria temática: chegamos às últimas páginas pensando que o desfecho era evidente, ainda que não tivéssemos nos dado conta antes. Estava escrito nos astros, mas ainda assim nos surpreende. A segunda batida do polegar sempre vem.

Com esta recomendação de leitura, aproveito para desejar que em 2020 – ano de grafia tão curiosa – nos seja possível romper com as horríveis simetrias em que o mundo mergulhou nos últimos tempos.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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