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7 de janeiro de 2020
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10:36

Parasita

Por
Sul 21
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Parasita
Parasita
Cena do filme “Parasita” (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

O termo “parasita” é utilizado para qualificar seres vivos, tanto vegetais quanto animais, que sobrevivem às expensas de outras espécies, as quais funcionam como hospedeiras, fornecendo-lhes alimentos. Pulgas e carrapatos são exemplos clássicos desse grupo – visitantes incômodos que passam suas vidas aderidos aos corpos de cães e gatos, dispondo do sangue de seus anfitriões involuntários em proveito próprio. Em seu emprego cotidiano, o vocábulo adquire um tom pejorativo ao designar uma pessoa que vive às custas de outra, um tipo de aproveitador que desfruta dos privilégios de alguém que, via de regra, se encontra em melhor posição.

Este foi o termo escolhido pelo cineasta sul-coreano Bong Joon-ho para nomear seu último filme, em cartaz nos cinemas brasileiros já há cerca de dois meses. Ainda que “Parasita” seja um tanto surpreendente e impactante, sua trama parte de um argumento mais ou menos trivial – os membros da família Kim, integrantes dos extratos sociais mais pobres, se infiltram como empregados na luxuosa residência dos Park, família típica da alta sociedade coreana. Com isso, passam a desfrutar, ainda que às migalhas, de algumas porções dos privilégios sobre os quais seus abastados patrões têm acesso livre e irrestrito.

Apesar disso, seria um equívoco supor que o vínculo parasitário que dá título ao filme parte unilateralmente dos integrantes da família pobre em direção aos mais ricos. A posição destes últimos só é assegurada pela existência dos primeiros – que cozinham para eles, cuidam de seus filhos e dirigem seus carros. Desse modo, as duas famílias compõem uma relação de exploração mútua, em que a dependência é estabelecida reciprocamente de ambos os lados, em uma via de mão dupla.

A residência da família Kim é um minúsculo recinto situado abaixo da superfície da calçada, com uma diminuta janela que emoldura o lixo impregnado pela urina dos bêbados que transitam pela rua. Para chegar até lá, é preciso atravessar uma tortuosa descida através de imensas escadarias que desembocam no bairro, até alcançar os últimos degraus que, finalmente, dão acesso ao pequeno apartamento no subsolo. Já a luxuosa moradia dos Park localiza-se na direção inversa e situa-se no alto de uma ladeira. Para alcançar a exuberante sala ornada por uma gigantesca parede envidraçada, também é necessário enfrentar alguns degraus, porém agora em sentido ascendente. É no trânsito por esses dois territórios distantes, um acima e outro abaixo, que a narrativa do filme se desenrola.

A certa altura da trama, descobrimos que essas duas regiões supostamente disjuntas são mais próximas uma da outra do que pareciam à primeira vista. Sob o verniz da felicidade aparente, repousa um mundo subterrâneo, avesso da superfície que o recobre. À capacidade do filme para indicar a distância que separa as duas classes sociais retratadas, soma-se sua competência em demonstrar o quanto ambas compõem faces de uma mesma moeda, unidas entre si por um vínculo quase simbiótico.

Ao indicar o que pode se ocultar sob a privacidade do ambiente doméstico de uma das famílias, “Parasita” revela o quanto os lugares que aparentam ser seguros e familiares também contém uma parcela não reconhecível, passível de produzir desconforto e estranhamento. Em relação à casa que habitamos, por exemplo, geralmente experimentamos a sensação de que conhecemos em detalhe todos seus cantos, frestas e fissuras, com um sentimento de intimidade similar ao que temos com nosso próprio corpo. A narrativa do filme retrata essa percepção como algo aparente, que se sustenta através de uma frágil ilusão de domínio.

A distopia de “Parasita” desacomoda a quem assiste, pois é reveladora do quanto os rastros do capitalismo se infiltram nos espaços mais íntimos e privados, como uma espécie de germe a parasitar nossas vidas. Em uma conjuntura em que a desigualdade social transborda a nível global, esse filme é oportuno não só para abordar a sociedade da Coréia do Sul, mas a contemporaneidade de modo geral.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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