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28 de janeiro de 2020
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10:50

Coragem

Por
Sul 21
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Capa do livro Le Consentement, de Vanessa Springora. Reprodução

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

 Em janeiro de 2020, Vanessa Springora publicou o livro Le Consentement (“O consentimento”), retratando a história de abuso sofrido há mais de três décadas (quando possuía entre 13 e 14 anos de idade), pelo famoso escritor francês Gabriel Matzneff, na época, um cinquentenário.

A mãe trabalhava no meio literário e a teria levado num jantar onde havia muitos escritores. Desejando ser escritora desde criança, Springora parecia fascinada pelo ambiente em sua volta. Tudo começou por “um olhar insistente, pois jamais teria sido olhada daquela maneira antes”. Desde o primeiro encontro, algo ali lhe invadiu, colocando-a precipitadamente no lugar de uma mulher.

Segundo a autora, a escrita foi a forma encontrada para dar voz à vítima. Mas, o fato de ter se tornado mãe e pensado na sua responsabilidade com os adolescentes em sua volta, que podem sentirem-se seduzidos por um pedófilo, teve um peso importante na sua decisão de escrever e coragem de publicar.

Filha de um pai violento e de uma mãe consumida pelo trabalho, Springora fala o quanto isso contribuiu para se sentir só, deixando-a vulnerável diante de alguém que possuía verdadeira “presença cósmica”: “olhar paternal, notoriedade na literatura e na mídia”. Com uma escrita precisa, ela desvela a cumplicidade de muitos: médicos, pois chegou a ser hospitalizada por conta das consequências do abuso; professores, pois ele a buscava na escola diariamente sem que ninguém desconfiasse e, os intelectuais, que veneravam Matzneff, inclusive escrevendo manifesto em sua defesa.

A escritora não estava sozinha ao se deixar envolver pela sedução daquele que hoje ela nomeia de “caçador de jovens, um ogro”. Muitos ao seu redor pareciam cegos, negavam. Nesse ponto, há uma questão fundamental, pois algo aprendi ao trabalhar com o tema da perversão ao longo desses anos, a saber, um perverso só atua sistematicamente no mesmo território quando existe cumplicidade.

Mais do que o caráter de denúncia presente nesse relato, ela aponta algo que os pedófilos tendem a recusar, a saber, a criança não tem como consentir numa relação sexual com um adulto, há uma disparidade de lugares em questão, pois há uma relação de poder e sedução em jogo. E ainda, ela não dispõe de condições simbólicas para lidar com as consequências desse ato. Isso precisa ser dito e repetido, pois o pedófilo, diferente do clássico abusador, recusa a possibilidade de se reconhecer como agressivo ou violento. Na verdade, julga-se como amigo, amoroso, digno de uma relação afetiva, conquistada por gestos de confiança.

Essa forma de seduzir joga a criança num certo embaraço para entender o que está se passando, deixando-a com dificuldades de reconhecer essa impostura como agressão. Entrar na intimidade da criança sem que ela sinta isso como uma violência faz parte das manobras do pedófilo para fascinar. Springora nos diz que Matzneff se orgulhava ao falar do quanto já havia tirado a virgindade de outras meninas sem fazê-las sofrer.

O gozo de tomar o outro como objeto, instrumentalizando-o, chega a tal ponto de qualquer gesto de afeto, insegurança, desamparo, ou até mesmo, timidez por parte da criança, ser interpretado como um apelo sexual, pois o pedófilo vai erotizar tudo que diz respeito ao universo infantil. Desse modo, em nenhum momento há o reconhecimento da dissimetria de lugares, ou seja, de que a criança não pode consentir diante de algo que ela não tem a representação do ato em questão.

Portanto, o pedófilo que abusa de uma criança não a ama, ele apenas tem uma teoria perversa sobre esse amor. O que ele busca mesmo é colocar em cena o gozo de ser o seu iniciador sexual, supondo assim deter o saber de como marcar o corpo do outro com as insígnias do sexo.

Além disso, a autora chama a atenção para o quanto a sociedade das décadas de 70 e 80 foram tolerantes ao discurso pró-pedofilia. Nesse contexto, os efeitos do movimento de maio de 1968 contribuíram para a cumplicidade da mídia e dos intelectuais. Considerado como tempo de reexaminar todas as questões referentes a organização social, familiar, sexual e política, o que era moralmente aceitável até então, foi radicalmente posto em questão. A partir daí se fortaleceu o discurso sobre a liberdade sexual, o declínio das leis estabelecidas, e o desejo de destituir os valores burgueses predominantes. Nesse apogeu da libertação dos desejos e de subversão das interdições sociais, alguns ativistas sexuais entendiam que essa nova ordem do direito ao gozo, concernia também às crianças. Assim, elas não deveriam ser proibidas de exercerem sua sexualidade diante de uma lei que viola o “seu desejo”. Tal ativismo desmentia o código penal vigente, pois ele era claro ao afirmar que uma criança não pode consentir, mesmo porque os adultos sabem o quanto são capazes de exercer a sua autoridade para influenciar a criança a fazer coisas que elas não desejam.

Atualmente, quando se fala em pedofilia é comum constatar em nossos interlocutores a expressão de repúdio, raiva e indignação. Prisão perpetua e extermínio são palavras que saltam naturalmente da boca das pessoas como forma de reagir ao insuportável. Isso é tão intenso a ponto de ser difícil encontrar alguém disposto a debater o tema sem se deixar tomar pelos traumas, afetos e senso de justiça envoltos nessa discussão. Nas três últimas décadas, a pedofilia tornou-se uma espécie de encarnação do mal, pois comumente sua “monstruosidade” não é reconhecida como humana. Daí a encontrar adeptos do extermínio ou das mais variadas formas abjetas de castração é mero detalhe.

Apesar de ser compreensível esse tipo de reação, isso leva ao equívoco de que tamanha ojeriza sempre ocorreu, ou no mínimo, se consolidou a alguns séculos. Entretanto, um breve percorrido sobre o tema é suficiente para se dar conta do quanto a predominância dessa forma de percepção da pedofilia é muito recente.

Conforme observa Serge André, há pouco tempo, a pedofilia desfrutava de uma recepção relativamente neutra e às vezes até benevolente entre o público. O psicanalista também faz referência à imprensa francesa das décadas de 70 e 80, apontando uma certa indulgência divertida com a qual alguns críticos literários e apresentadores de televisão possuíam em relação a temática. Chama a atenção para o caso considerado como um dos mais representantes disso na França, referindo-se a outro escritor, Tony Duvert, ensaísta e filósofo, declaradamente pedófilo e ativista. Toma como referência o romance publicado pelo o autor Paysage de fantaisie (1973), que retrata crianças sendo treinadas para a prostituição por um adulto; largamente elogiado por escritores e críticos da grande mídia francesa, que o consideravam a expressão de uma subversão inovadora e saudável diante da sociedade burguesa e preconceituosa. Apesar das raras vozes discordantes, o autor chegou a ser agraciado com o prêmio Médicis. Conhecido por sua assumida pedofilia, Duvert se posicionou publicamente defendendo o direito das crianças a exercer a sua sexualidade com um adulto.

Ainda que em dias atuais possa parecer absurdo, na época, o ativismo pró-pedofilia não era raro, pois inclusive há registros de associações legalmente reconhecidas em defesa da pedofilia em inúmeros países, especialmente na Europa. Entre suas reivindicações elas demandavam a aceitação social e a legitimidade da relação sexual de um adulto com uma criança, contestando a noção de consentimento ou abuso. Entretanto, a partir da década de 80 passou a não haver mais aceitação desse tipo de reivindicação, restando apenas o espaço sombrio da Deep Web para essas manifestações absurdas.

Um episódio emblemático da complacência da mídia com a pedofilia é a entrevista[1] realizada em 1990 na televisão no famoso programa Apostrophes, com o mesmo Gabriel Matzneff, desde já, declaradamente pedófilo e defensor do direito a pedofilia. Autor de vários romances, em Les moins de seize ans (1974), ele descreve a personificação do sexo angelical, conferindo o seu amor por uma menina de forma sacralizada. Apesar de o escritor já ter participado de diversas entrevistas sustentando sua posição, essa em especial, repercutiu mundialmente, em função da histórica intervenção de Denise Bombardier, escritora e jornalista canadense, presente no debate.

Bombardier, ao testemunhar a animação do entrevistador, iniciou sua fala corajosamente dizendo talvez habitar em outro planeta por aquilo que acabava de escutar. Ela foi a primeira a denunciar a pedofilia de Matzneff como crime, pois seus livros não eram ficção e sim relatos das experiências sexuais dele com crianças. Essas relações foram reconhecidas pelo próprio autor, embora defendendo a tese comum a todo ativista pró-pedofilia, de haver “consentimento e amor”.

A patética empolgação do entrevistador Bernard Pivot não escapou aos olhos e ouvidos de Bombardier. Pivot, além de situar seu convidado como especialista nas matérias de sexo parece curioso para saber de onde viria a especialidade dele em colecionar menores. Diante de tal questionamento, Matzneff rindo e sendo acompanhado por outros que também riam, responde que mulheres com mais de 20, 25 anos não lhe interessava, pois são duras e nunca teve sucesso com elas, preferindo as meninas por serem mais gentis. Bombardier diz não compreender como naquele país a literatura poderia servir como álibi para esse tipo de confidência, pois o livro trata da violação de meninas descritas como loucas por ele, ao que a jornalista chama de sedução devido ao seu sucesso literário e abuso de poder na relação com crianças e adolescentes.

Matzneff, ao se defender, sustenta a retórica comum entre pedófilos, a saber, no “meu livro há amor, sedução recíproca e consentimento”, pois ele não seria o protótipo do macho a forçar uma relação sexual com alguém. Mesmo o escritor tentando descrever a suposta delicadeza de seus atos, a jornalista resiste e denuncia as características abjetas de seus personagens, lembrando a todos os presentes: estamos no fim do século XX, é preciso defender o direito das pessoas, o direito a dignidade, também das crianças e dos jovens que devemos proteger. Ao dizer da necessidade de impor limites à literatura, Bombardier estava dando um testemunho do quanto era necessário denunciar também a cumplicidade do gozo espetacular promovido pela mídia.

Portanto, se atualmente existe verdadeira ojeriza em relação a pedofilia, a ponto de ser impensável algum meio de comunicação ceder espaço para qualquer defensor; há muito pouco tempo não era assim. Vozes corajosas como de Vanessa Springora e Denise Bombardier foram fundamentais para essa mudança de posição. Essas mulheres se levantaram contra a impostura do macho opressor que goza, tanto da impunidade quanto da cumplicidade de muitos.

Última observação: o pedófilo precisa enfrentar as consequências de seus atos e lidar com as incidências da lei. No entanto, parece-me imprescindível reconhecer o fato dessas pessoas precisarem de tratamento. Logo, para além do código civil, trata-se de uma questão de saúde pública e responsabilidade social.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e do Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor do livro Perversões: o desejo do analista em questão. Curitiba: Editora Appris, 2019.

[1] Realizada em Paris em 02 de março de 1990. Ver youtube: 1990: Gabriel Matzneff face à Denise Bombardier dans “Apostrophes”/Archive INA Culture. Ver também: Aveux du pédophile Gabriel Matzneff à la télévision devant Denise Bombardier.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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