Colunas>Coluna APPOA
|
24 de dezembro de 2019
|
10:36

Mensagens claras: uma técnica obscura a serviço da violência

Por
Sul 21
[email protected]
Mensagens claras: uma técnica obscura a serviço da violência
Mensagens claras: uma técnica obscura a serviço da violência
Vídeo da campanha “Le message clair” na França (Reprodução/Youtube)

Alfredo Gil (*)

Entre 1806 e 1807 Benjamin Constant escreve « Adolphe ». Homem político francês, renomado, Constant se aventurou muito pouco na literatura mas revelou um grande talento nesse campo. Neste romance autobiográfico, que foi publicado em 1816, podemos admirar seu talento no relato de um drama interno de seu protagonista, Adolphe: suas ruminações infindáveis, numa endoscopia rigorosa que descreve suas dúvidas, ansiedades, contradições e desejos, tudo pela conquista de sua bem amada, Ellénore, e, mais tarde, para separar-se dela.

Trata-se talvez de uma das mais belas descrições da condição do ser « tímido ». Timidez (neste caso de um homem) que paralisa o sujeito diante do objeto de desejo. Adolphe luta contra si mesmo, contra o que chama « sua invencível timidez » na presença de Ellénore. Ele se irrita por não conseguir superar sua dificuldade em declarar seu amor. Obcecado em justificar sua impossibilidade de agir, ele conclui: « Quase sempre, para vivermos em paz conosco, travestimos em cálculos e sistemas nossas impotências e nossas fraquezas: isso satisfaz esta porção de nós que é, digamos assim, espectadora do outro ». As diferentes vozes que (des)orientam seu fluxo de consciência, carregam Adolphe para diferentes vias, por vezes em contradição com seu desejo. E, para tentar anular a dor de sua experiência emocional, mas também para não lesar seu narcisismo, seu « amor próprio » como ele mesmo diz, lhe resta a maquiagem dos « cálculos e sistemas ».

Caro leitor, pode parecer estranho, mas a timidez de Adolphe – que pensa e elucubra, produz « cálculos e cria sistemas » e nunca age – sua leitura me voltou à tona quando tomei conhecimento do novo « método » chamado « le message clair » ( a mensagem clara) que tem sido amplamente preconizado pelo Ministério da Educação francês para tratar de situações de violência e disputa no âmbito escolar entre crianças de quatro a dez anos. São procedimentos que, podemos dizer, servem para controlar as situações de extroversão de sentimentos que não se deixam domesticar pela inibição e timidez.

Foi um casal de amigos que me contou como seu filho de quatro anos tem sido instruído a praticar o dito « método », importado do Canadá.

Em que consiste « a mensagem clara » ? Ela tem sido apresentada como uma técnica de comunicação que se desdobra sistematicamente em seis enunciados cuja ordem deve ser rigorosamente respeitada pela criança agredida ou ofendida, que a endereça a seu agressor. Exemplo: Hora da recreação. Uma criança empurra uma outra e segue seu caminho. A « vítima » vai atrás e prepara seu « agressor » enunciando a primeira sentença das seis que o método exige: 1) « vou te dizer uma mensagem clara ». A segunda etapa é a descrição dos fatos: 2) « tu me empurrou ». Na terceira etapa ela conta o que sentiu: 3) « fiquei muito brabo e irritado ». 4) Ela manifesta sua necessidade: « preciso me sentir em segurança e tranquilidade para estudar ». 5) Verificação de que a mensagem foi compreendida : « tá entendendo? » 6) Como conclusão a criança agredida propõe uma solução ou uma demanda de reparação: « por favor, deves pedir desculpas e para de me empurrar, não faz isto nunca mais ». Demonstração:

A ideia seria ótima se a intenção fosse de entabular um diálogo que contenha a violência através da palavra, pois a domesticação da agressividade, inerente a cada um de nós, começa pela possibilidade de endereçar-se a um outro: um bebê com fome deixa de chorar « violentamente » a partir do momento em que ele pode nomear e pedir o objeto que sacia.

Que os professores se confrontam com situações de violência, que socialmente concebemos associadas a uma crise da autoridade, correlativa a um estado de agitação permanente de alguns alunos, de impaciência e falta de disciplina que exigem as aprendizagens, ninguém pode negar.

Mas que as instituições pretendam enquadrar e controlar as excitações infantis através de uma sequência de mensagens codificadas, reduzindo a palavra a um alinhamento de códigos, sem que o enunciado sofra alguma deformação subjetiva pela parte daquele que escuta (o agressor) – na medida em que sua significação estaria inteiramente contida no desmembramento da fala nas seis etapas proposto pelo « método » -, uma tal pretensão é, no mínimo, questionável, e talvez mesmo preocupante. Além disso, apesar de ser apresentada como inovadora, a técnica provavelmente seria também ineficaz. As crianças são as primeiras a desmentir esta política de objetivação da palavra que pretende evacuar as malícias da subjetividade. Exemplo. O filho de quatro anos do casal de amigos conta para a sua mãe que, provocado por um coleguinha, devolveu um soco que teria recebido. Então sua mãe pergunta porque ele não utilizou uma « mensagem clara » para evitar a agressividade: « ah não, respondeu o filho, o que ele fez era muito grave pra uma mensagem clara ».

É difícil não concluir que o objetivo deste método é de que « as mensagens claras » sejam cristalinas, um « diálogo » transparente e antisséptico, em que a fala do emissor chegue ao destinatário de modo objetivo, unívoca sem equívoco, sem ser contaminada por aqueles elementos de que Adolphe nos lembra: « não existe unidade completa no homem, e quase sempre ninguém é totalmente sincero nem é totalmente de má-fé ». Em outros termos, por mais que as « mensagens claras » tentem controlar, como Adolphe, através de « cálculos e sistemas », a agitação inerente a todos, aquele menino de quatro anos já nos ilustra um dos limites na aplicação « da mensagem clara ».

Aliás, podemos também nos perguntar como farão os jovens para se aproximarem e encontrarem seu camarada sem dar aquele empurrãozinho libidinal? E como farão os meninos para driblarem as mensagens claras e continuarem a rolar no chão provando quem é o mais forte?

Por sorte, as diretrizes do Ministério não esqueceram o emprego das mensagens claras também para as situações positivas, caso a criança pretenda comunicar um contentamento. Que alívio.

Então, se amanhã eu enviar meu cartão de Feliz Natal ao Ministério, farei em seis etapas, é claro, mas não direi aqui se ela será de contentamento ou descontentamento. Para vocês, leitores, minha mensagem vai à moda antiga, em poucas palavras: Boas Festas e Feliz Natal.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora