Robson de Freitas Pereira
Cena de “O irlandês” , de Martin Scorcese. Diálogo entre Jimmy Hoffa sindicalista corrupto e brigão com o gangster (Tony?) com o qual precisa fazer as pazes para que “os negócios” continuem. A reunião fracassa quando depois dos “acordos comerciais” de praxe o outro lhe diz: você me deve um pedido de desculpas. Por quê? Por se dirigir a mim com um “You people”. Jimmy Hoffa não se desculpa porque acha mesmo que ele é um “you people”, significando um carcamano qualquer, um mafioso como outro qualquer, uma gentalha.
Saem no braço outra vez, rolam pelo chão como dois guris briguentos. Não há conciliação possível quando a honra, transformada em injúria, entra em jogo. Hegel tinha razão, os homens desafiam a morte pelo desejo de reconhecimento.
Corta para o Rio de Janeiro de Manuel Duarte personagem principal de Essa Gente, mais recente romance de Chico Buarque.
Com domínio da linguagem, Duarte nos conduz com diários, sonhos e narrativas pela violência explícita ou sutil, mas não menos letal e corrosiva do Rio de Janeiro, espelho do Brasil. Cartas, sonhos angustiantes ou prazeirosos, fragmentos de diários seus e de outros personagens, estórias de uma ficção fantástica e assustadoramente atual – como a “produção” de castrati por um maestro italiano radicado no Brasil mancomunado a um pastor neo-pentecostal. Claro, os jovens emasculados em idade temprana, para não perder o timbre de voz, são todos pobres, negros ou pardos.
O painel é amplo. Polícia contra essa gente, matando sob aplausos e incentivo dos donos do poder. Espancamento do mendigo pelo cidadão de bem, sócio do country club. Seu amigo do colégio Santo Inácio que há pouco chorou a perda de um filho de vinte anos e tem gestos de solidariedade surpreendentes com o velho amigo.
Bulling sofrido na escola pelo filho, porque parecia diferente e não teve a mesma experiência dos coleguinhas, mostrando no microcosmo a intolerância geral (Rasga coração, de Jorge Furtado mostrou isto também há algum tempo).
Na cidade, a cada chuva alagamentos constantes, quedas de pedras e de árvores demonstrando a falência dos serviços urbanos.
Os porteiros humilhados e destratados pelos moradores do condomínio também decadente, outrora sinal de distinção para seus antigos moradores.
Amizade entre o morro e o asfalto, o escritor e seu salva-vidas Agenor. Quem é amigo tem salvo conduto para subir o Vidigal e visitar seu “cafofo”. Onde a polícia sabe servir a quem é convidado ou transformar-se em algoz do desafeto.
Manuel Duarte escritor em decadência lutando contra a falta de inspiração para escrever seu ultimo romance. A fonte secou? Sem dinheiro, à beira da indigência, duas ex-mulheres. Acrescente-se a falta de sensibilidade, ignorância de como lidar com um filho quase adolescente. Consegue conversar com o filho depois de sobreviver ao afogamento e ter sonhos com o próprio pai.
Seu tempo é hoje, um agora urgente, uma cronologia que abarca os últimos três anos – 2016-2019 . Tempo tão atual que não propicia qualquer interpretação profunda, mas com descrição de sintomas agudos, uma paisagem agônica, representada num afresco monumental no qual o leitor tem um papel essencial. Ler os detalhes, as minúcias explicitas ou sutis dessa gente definida ou delineada pela “pena vadia” do escritor.
Parafraseando o compositor popular poderíamos escrever: “essa gente tá diferente/ que já não me conhece mais/eu já não reconheço mais.”
Será? Porque afinal, Essa Gente compõe a multiplicidade de outros que nos rodeiam neste mundo e, simultaneamente, somos todos nós.
(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).
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