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31 de dezembro de 2019
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10:50

Escrever e ocupar

Por
Sul 21
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Marcia H. de M. Ribeiro (*) 1

“O indizível não está escondido na escrita, é aquilo que muito antes o desencadeou”.
Georges Perec

“Parece ruína e já é construção”.
Julián Fuks

A literatura ilumina os significantes de uma época. Registra e questiona os conflitos do laço social a incidir nos modos de ser do indivíduo. Processo caro aos psicanalistas alinhados com os pensamentos de Freud e Lacan, que sustentam uma relação primordial entre individual e coletivo, entre sujeito e cultura. História individual e história coletiva tramadas por fios narrativos compartilhados.

Dentro do campo literário, a literatura de testemunho expressa o desejo de narrar uma experiência com o inverosímil. Não pretende explicar o acontecimento traumático, mas “contrabandear a memória” para o texto. E, então, operar um tipo de transmissão ao encontrar um leitor-testemunha disposto a atravessar as ruínas com os personagens.

Festa de final de ano para as crianças do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), em São Paulo. (Foto: MSTC)

É importante ficarmos advertidos, mesmo com um grande esforço, legítimo, não conseguimos narrar tal qual o vivido. Nossas histórias, nossas ficções – e não leia-se aí nenhum desqualificativo, porque constituem nossa verdade – são efeito dos recortes possíveis das sensações e das imagens pelos recursos de linguagem disponíveis depois de uma experiência. Só o fato é imutável e completamente inapreensível como todo para os humanos porque somos seres de linguagem.

Li recentemente o último livro de Julián Fuks e reconheço na obra também essa qualidade testemunho. Ocupação (2019), editado pela Companhia das Letras, explicita várias camadas da trama sujeito afetado pela discursividade de seu tempo e da dos antepassados. O processo de escrita foi acompanhado por Mia Couto dentro de um programa de tutoria literária promovido pela empresa Rolex. Julián foi escolhido por Mia dentre quatro jovens escritores de língua portuguesa com afinidade temática.

Ocupação dialoga com o filme Era o hotel Cambridge (2016). Dirigido por Eliane Caffé, foi concebido e roteirizado a partir de uma residência artística, em que participou o escritor, durante ocupação do antigo hotel por moradores brasileiros exilados de sua cidade, e estrangeiros exilados de sua terra. Refugiados de outras violências.

Ocupar é significante que funciona como fio que amarra as histórias individuais e coletivas presentes no livro. O prédio em ruínas abandonado no coração da cidade transformado lar; as histórias de deslocamento forçado e refúgio; o ventre vazio-ocupado da companheira do narrador; o lugar de pai – do que foi, do que é e do que virá a ser; o ponto insondável de um passado familiar remoto afetando o corpo.

A vida na Ocupação, a política da cidade e a intimidade tramadas, histórias que afetam a vida do narrador em primeira pessoa. Outros falam com Sebastian, por Sebastian. A voz de um na voz de muitos.

Ocupar com a escrita. Escrever para não sucumbir à melancolia, à ruína dos projetos político sociais de garantia da vida plural, das manifestações culturais. Escrever para testemunhar, transmitir e resistir. Escrever para ocupar os espaços abandonados pelo pragmatismo capitalista. Escrever para voltar a sonhar.

Escreve aí, diz Ginia, personagem moradora da ocupação, sobrevivente de terremoto no Haiti: “Nada poderia ser mais coletivo do que um acontecimento assim, mas cada um de nós vivia aquilo absolutamente só (…) antes disso, nossa tragedia já foi muito maior (…) uma catástrofe humana, o colonialismo. Era a maior concentração de escravos do planeta. (…) Mas ponha algo mais que a dor, algo mais que a desgraça, se quiser escrever qualquer coisa que valha a pena.”

Julián Fuks conseguiu.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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