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26 de novembro de 2019
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10:35

O espírito do nosso tempo e os benefícios de uma análise

Por
Sul 21
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O espírito do nosso tempo e os benefícios de uma análise
O espírito do nosso tempo e os benefícios de uma análise
Reprodução/APPOA

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Tem sido um desafio para a psicanálise reinventar-se diante de um cenário que busca transformar singularidades em massa de consumidores; através do seu modelo de gestão de informação, a lógica do novo mercado reduz tudo a números. Não é novidade o fato de sermos surpreendidos pela revolução digital, especialmente, pela forma como lidamos com as informações e o quanto ficamos expostos aos dados. Nesse contexto, supostas identificações são produzidas em série mediante a constituição de algorítimos.

Entre tantas temáticas, pode-se pensar o quanto a atualidade convoca os psicanalistas a preservar o lugar da diferença e apontar os riscos dos discursos totalizantes.

Esse foi o pano de fundo do Congresso internacional O espírito do nosso tempo, promovido pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre e o Instituto APPOA, nos dias 08, 09 e 10 de novembro. O evento contou com a presença de aproximadamente 600 participantes, entre eles, conferencistas de vários Estados e países.

A ascensão da retórica do absurdo propagada pela extrema direita e o colapso das democracias ocidentais, responsável por legitimar a recusa as minorias, a precarização do trabalho e a decadência do Estado de bem-estar social foram alguns dos assuntos colocados em discussão. Educação, racismos, segregações e migrações também embasaram os debates com o propósito de questionar os riscos de desintegração do laço social e situar a voracidade da lógica capitalista e suas múltiplas formas de exclusão. Ou seja, fez-se imprescindível construir estratégias para transpor o imperativo de reconhecer valor apenas naquilo que tem estatuto de mercadoria e pode aplacar a sede do “divino mercado”.

Além da oportunidade de dialogar com profissionais de diferentes culturas e estilos, relançou-se o desafio de transmitir conceitos fundamentais da psicanálise à luz das problemáticas contemporâneas com suas singulares expressões sintomáticas e incidências no laço social. Foi possível testemunhar o engajamento dos colegas na aposta de uma psicanálise viva, em sintonia com seu tempo e os impasses subjetivos de sua época.

É no espírito desse tempo que o sujeito demanda uma análise hoje, como uma tentativa para não sucumbir à massa. Para além do mal-estar dos sintomas de cada indivíduo, analisar-se é uma possibilidade de reconhecer o próprio Estilo e sustentar uma posição singular em relação ao saber. Por isso, a psicanálise é antissegregativa, pois o psicanalista labora para escutar o desejar de cada sujeito, assim como, para abrir algumas frestas para pensar na nossa responsabilidade com os outros.

No final do congresso encontrei um aluno do segundo semestre do curso de psicologia. Ele falou do desejo de ter colocado uma questão para os palestrantes, mas não teve coragem, a saber: “quais seriam os benefícios de uma análise na atualidade”? Potente a interrogação do jovem estudante, ensaio uma tentativa de resposta.

As pessoas procuram um psicanalista pelos mais diversos motivos. Entretanto, é comum as seguintes justificativas: tentar se conhecer melhor, resolver problemas que insistem em se repetir, ou ainda, buscar alívio para o peso de seus sintomas. O leque de argumentos pode ser muito amplo. Mas, provavelmente, a maioria dos analistas concordariam em dizer que quando alguém decide buscar uma análise é porque reconhece algum índice de mal-estar.

A cultura oferece muitas formas de ajuda, pois tantas são as terapêuticas, quanto as mazelas humanas. No entanto, há uma particularidade da clínica psicanalítica, qual seja, escutar cada sujeito em sua radical singularidade, suspendendo qualquer tentativa de julgamento moral, dominação ou prescrição. Logo, o lugar de um analista só se sustenta por uma ética capaz de situar o analisante em relação as suas condições de interpretação e sustentação do desejo.

Freud, ao propor a associação livre, convidando o sujeito a falar o que lhe vem à cabeça, para além de uma suposta terapêutica de resolução de conflitos, colocou em cena o saber inconsciente e a posição desejante de cada um. Mas por que mesmo isso é importante? Por um simples motivo, como aprendemos com Jacques Lacan: haverá alguma espécie de sofrimento quando não escutamos os nossos desejos. Nossa neurose de cada dia nos faz acreditar que abrimos mão dos desejos em função dos outros, como se fossemos apenas vítimas ou expectadores do bonde da vida. Talvez, seja em função disso a tentação em localizar culpados por nossas frustrações. Nesse aspecto, uma análise poderá fazer a diferença, pois ela vai implicar o sujeito com aquilo que diz e, consequentemente, com a sua responsabilidade em relação ao rumo de sua vida.

Um dos benefícios da análise é se culpar menos e se responsabilizar mais pelas coisas. Parece simples, embora, não é fácil. A tendência a vitimização insiste em encontrar justificativas para evitar o protagonismo inerente aos nossos atos, seja por ficarmos refém do suposto julgamento dos outros, ou ainda, pela impotência em lidar com as consequências de assumir uma posição. Não se trata simplesmente de covardia ou insegurança, muitas vezes, está em questão uma ressignificação do sujeito em relação ao tempo, pois de um lado, o neurótico vive fixado numa nostálgica relação com o passado; de outro, tomado pela angústia de dar conta do futuro idealizado. Nessa encruzilhada, ele perde o agora na ilusão de haver garantia do amanhã.

Para além de recordar, repetir e elaborar a história, a experiência de análise nos defronta com questões que podem mudar as possibilidades de lidar com os outros e habitar o mundo. Como? Reconhecendo que a falta viabiliza o desejar e jamais poderá ser tamponada, desconfiando de saídas mágicas para problemas reais, relativizando certezas categóricas, transpondo dúvidas paralisantes, e ainda, não insistindo em tornar possível o impossível, e impossível, aquilo que seria plenamente viável. Isso não se dá através de uma ingênua lógica de conscientização, depende de cada um se apropriar do seu patrimônio inconsciente. Portanto, esses benefícios terão suas reais incidências no laço social, seja porque o sujeito passou a suportar os próprios limites, ou porque ele pôde respeitar os dos outros.

Antes de finalizar, cabe a ressalva, os verdadeiros efeitos de qualquer análise não podem ser quantificados, pois eles são o testemunho particular de cada um e, nesse caso, não há produção em série, tampouco qualquer protocolo para atingir massas e adaptar comportamentos para melhoria de performances. Pelo contrário, abrir mão do ideal de responder à demanda dos outros é uma experiência libertadora.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. Autor do livro Perversões: o desejo do analista em questão. Editora Appris, 2019.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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